Ainda te vejo sentada à lareira na
casa térrea onde tudo estava ao alcance da mão. O louceiro, a pia, a arca do
pão. Defronte da casa, tendo o calor do sol nos dedos, treinava a caligrafia
nas cópias encomendadas pela professora. Uma cadeira servia de secretária; um
banco de madeira, à medida da minha pequenez, amaciava as horas que ali passava.
Desenhava as letras a tinta permanente. Ainda hoje me escapa a razão desta
paixão. Talvez porque realçasse a cor preta das letras no papel, embrumando-me
os olhos, agitando um sentir que, penso, saía da alma. Sempre tive mundos que
gizava e me bastavam. Criava-os e recriava-os. E tu foste a principal causa desta
efervescência. Alimentavas-me o espírito. Eras espírito num corpo avantajado,
já um pouco encurvado, orlando a floresta do fogo crepitante. Quem sabe se não
havias já dançado num ritual de espiritualidade em outra vida? Eras tão crente
e seguidora de rituais ancestrais! Todos os anos, na semana santa, me avivavas
a memória, com casos acontecidos quando não se respeitavam. Como aquele de se
ver a cara de Cristo no lençol do estendal porque fora lavado na quinta-feira à
tarde. Durante anos, respeitei escrupulosamente o tempo pascal. Se o não
fizesse, sentia que estava a trair a tua memória.
(...)
Odete Ferreira
(Uma breve passagem da narrativa "Na memória de ti", publicada na Coletânea "A Despedida" da Editora Papel d´Arroz" -2015)
Por esta altura, a avó paterna vive comigo estes dias. Desde os meus dezasseis anos.