segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Conheço-te mas nunca saberei nada de ti


Conheço-te de longa data. És o meu apoio sempre que a minha alma se solta ou se rabisca em palavras. Sinto-te. Quase adivinho o teu sorriso. Deixas que te toque. Superfície brilhante, escorregadia ou rugosa. És indiferente à forma ou revestimento que te quiseram dar. És corpórea. Fortaleceste-te nas incríveis histórias que ouviste. Guarda-las na essência do significado de que és feita. Sabes tanto de mim! E de outros que te veem como colo… Mas eu nunca saberei nada de ti. Qualquer segredo morrerá contigo. Por isso te partilho. Te confidencio. Te sorrio em mais uma manhã de sol quente aquecendo a minha face…

Odete Ferreira, 23-02-2014

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

No hoje quero os sonhos futuros

Linhas paralelas
no piso da estrada
risco contínuo
ou descontínuo
caminho dividido
apartheid político
cabala encapuçada
disfarçada de destino.

Crês? Desconfia!
Afasta-te do rebanho
porfia a tua rebeldia
à natureza confiável
rosto digno, imutável,
jardim no simbólico Éden
acolhido serás no verbo primitivo.
Desnudo do vício corrupto
renascerás, ser humano!
E todos os sonhos serão puros.
Comungarás da harmonia
Ar, Terra, Água…
No presente,
regressa ao passado.
Embebeda-te
do vermelho sumo,
dança
hinos de alegria,
tece
mantos de flores,
banha-te
em águas cristalinas
e, por favor, faz hoje os sonhos futuros!
Tenho pressa. O tempo é vilão à solta…
E é em ti, amor, que confio
a minha alma desgovernada
na tua essência aprisionada.
Aí estarei segura…
OF -  02-02-14 
Imagem – O paraíso terrestre por Hieronymus Bosh

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Hoje estou magoada

Hoje estou magoada.

Ponto final.
Sem vírgulas,
sem reticências,
sem ponto e vírgula
e demais família alargada.
Com a chuva que me ensopa.
Com as vidas, vida de pessoas.
Comigo!
Sim, comigo!
Porque na utopia
e no sonho
me (re)vivo.
E faço-me mal
com um fingido punhal
que por ali ficou esquecido
nos escombros do cenário.
Porque me refugio
na metáfora do ideário.
Porque nasci aquário,
bolsa de água,
como barriga de mãe.
Solta, corre na aventura
como heróis e heroínas
de histórias da carochinha.

Hoje estou magoada.
Ah! Se estou!
Mão escrevente
emocionada,
lágrima que verte água.
Chuva ácida,
amargor sem dor.
Interior sonhador
(apesar de tudo).
Raios partam estes dias!
Aguardo uma boa nova
emergindo de águas enevoadas.
Alvorotada,
como quando chegava o carteiro…

OF -  09-02-14
Foto – Autor desconhecido

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Crónica de um insólito anoitecer na Invicta

Noite lacrimejante pelos chuviscos que levam os olhos a solidarizar-se com o tempo que nos ensopa as roupas descompostas pela brisa agreste. Candeeiros profusos conferiam ainda um ar natalício à praça. Muitos transeuntes, pessoas aparentando o turismo que o Porto já reclama para si. Conjecturas, enquanto aguardava o meu transporte junto a uma praça de táxis. Não faltava muito para as vinte e trinta.
O sotaque português falado no Brasil obrigou as minhas orelhas a rodar a cabeça, a observar uma família que se passeava com o vagar ocioso do tempo de férias. Um dos elementos questionou algo a um transeunte e quase de imediato foi interpelar um taxista.
A patriarca da família, senhora bem arranjada numa simplicidade que casava bem com o seu ar tranquilo, deve ter adivinhado que a minha curiosidade precisava de alimento. “Você sabe como fazer para ir para a baixa?”. “Bem, na baixa praticamente já estamos…”. E desatei, num fôlego, os nós que poderiam criar obstáculos. Simplifiquei. A conversa brotou naturalmente entre todos nós: eu e a família (marido, filho, esposa e neta).
Donde eram, o porquê da escolha do Porto… A moça, uma jovem de uns 15/16 anos, viera conhecer o país onde nascera. À data, o pai jogava num clube portuense. Quando disse que tinha família no Brasil, os sorrisos uniram-se na cumplicidade da língua comum…
“Ah, espera aí, acho que tenho comigo 50 reais. Cá não valem nada”, disse num impulso. Abri a carteira e, como se de uma cartola se tratasse, de lá saiu a nota. O sorriso abriu-se num olhar surpreendido, verbalizando “É mesmo para mim?”. “Claro, a mim de nada serve. No Brasil ainda dá para alguma coisa de jeito?”. “Se dá! E muito, um sapato uma camisola…”, ripostou o avô, um senhor de voz doce e postura gentil.
Por largos minutos, ali ficamos trazendo na conversa um pouco de cada um de nós.
Inusitado, este encontro tornou o anoitecer na invicta um dia especial.
Afinal o que receia o ser humano na abordagem a um semelhante? O medo que começa a fazer parte de uma estratégia global de insegurança pessoal! E assim se vai corroendo o que é basilar: comunicar, aproximar, estreitar a distância entre seres humanos.

Odete Ferreira, 24-01-2014 – Foto Odete Ferreira