domingo, 25 de janeiro de 2015

Olhares

Obra de Graça Morais

Bebia o teu olhar azul
no olhar verde das giestas tardegas
quando em manhãs preguiçosas
me sorrias cobrindo-me de véu.

Sentia-me abençoada
perfumada de rosas que não trazias
mas sabia do teu cuidado com elas.
Não vias, mas sentias.
E eu sabia!

Dei por mim a espiar-te.
Passos inseguros,
trôpegos nos escolhos da calçada.
Caíam outros olhares,
carinhosos ou desdenhosos.
Viam-te mas não sentiam.
E eu sabia! E doía!

Havia o jardim onde o rio se vestia
de cores e se encharcava de odores.
Foi aí que te encontrei.
E sem saber te amei
nesse olhar azul intenso.
Sabia que não me pertencia.
Mas vias-me! E sorria!

Contemplativa
falei meigamente
do jardim, do rio, de mim.
O meu verde era agora o teu azul.
Cegava-me apenas o sol.
Mas não a diferença.

OF – 14-01-15  

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Permito-me


 Obra de Van Gog

Sento-me cuidadosamente
como quando era menina.
Afastava os folhos
dos vestidos princesa.
Lembro-me que já sou fruto maduro
e posso meditar entrecruzando
partes do corpo crescido
no tempo que me é permitido.

Lembro-me dos eucaliptos fantasma
que assobiavam ruidosamente.
Tão altos, tão perto do céu…
Decerto neles morava o vento
que me assustava
e todo o mistério
que já questionava.

Abria um olhar desmesurado
quando o mistério me acenava.
Sabia que um dia
seria companhia
deste olhar irrequieto.
Que vai para lá do infinito
onde me sento,
onde medito,
onde me sinto.

O vento já não assobia.
Eleva-me a brisa
ao teu cheiro maresia.
Por ali me tardo,
esperando-me,
permitindo-me
ser noite fantasia,
ser mistério que rezas no rosário.
Relíquia num intocável relicário.

OF- 09-08-14

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Respingos quotidianos


Obra de Brad Kunkle

- Sinto-me tolamente apaixonada!
Devolveu-me um olhar indiferente. Soou-me a trocista.
- Não dizes nada?
- Isso  é um banal pleonasmo. Estou habituada a tiradas tuas mais originais. Estares ou sentires-te apaixonada  é, de per si, um estado atoleimado. Sabes, aquele olhar de nuvem azul, aquela atitude do peace and love, aquela levitação transcendente própria de um retiro meditativo…
- Sentir apenas, ignorar egoisticamente, todo e qualquer incómodo social… - interrompeu-se antes que alguma coisa lhe retirasse um estado que queria prolongar. Tinha direito. Como quando se concedia ao luxo de uma massagem. Descomprimia e tentava convencer-se que a doutrina era essa mesma. Um mundo cada vez mais desigual, mais injusto, mais cruel.
Raios! Abraçar a humanidade era seguramente o estado mais puro da paixão! Autorizar-se uns dias de férias. Parecia-lhe a solução. Espetou o olhar na sua amiga, surpreendida pela ausência de uma simples interjeição.
- Genial esta solução, não te parece?
- Qual? Esqueces que és compulsivamente preocupada com o outro?
- Ah! Não és adivinha, claro! Pensei que tinha pensado alto…
Não… Conceder-me umas férias, desligar do lixo tóxico e das lixeiras a céu aberto onde os mais vulneráveis forçosamente focinham. Não é raro pensar nas mães que deram à luz seres amados e assistir à execrabilidade dos esquemas que engendram…
- Olá  mãe, sim, já sabia, mais uma. Estes filhos da mãe parecem uma nascente que não seca, nem no verão!
Terminados os mimos entre mãe e filha, lá lhe respondeu:
- De facto, é uma boa ideia! Autorizo-te a estares tolamente apaixonada e eu vou empanturrar-me com o sabor daquele gajo que vi passar… Por favor, traga-me um igual, pediu, sorridente, à menina que servia a esplanada.
E desatamos numa gargalhada única, doseada com alguns termos do nosso vernáculo português.
Deixei-a lambuzar-se com o tal gajo. Eu preferia saborear o meu estado de graça e preservar a minha cinturinha de vespa…

Odete Ferreira  – 26-07-2014 

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

No destempero, desespero*

 Obra de Edvard Munch

Passeio as horas vagas
no vazamento da foz.
Lá onde se levanta a voz
e se ouvem as misérias
na torrente levadas.

Choraram olhos,
branquearam o negro da indigência,
purificaram dores
para não (te) verem o coração em falência.

Ah, este tempo!
Este tempo de destempero!
Este céu que se esvai em lágrimas!
O mar maneja ondas de revolta
que morrem na praia deserta.
Envergonhadas as dunas hibernam
mas não calam o desespero.

E eu, que faço às horas vagas?
Deixo-as livres, embarcadas nas vagas.
Manifesto-me como Dantas,
verborreia inocente, passiva.

Quem me ouve?
Cresce a surdez como erva daninha
ceifando as raras papoilas dos campos rebeldes.
Algumas fizeram-se moitas
camufladas no verde esperança.
Atenta, ouço-as à noitinha…

OF- 21-11-14

* desespero - vocábulo usado como nome e não como verbo