domingo, 22 de fevereiro de 2015

Um dia serei a casa

  Obra de Selene Salvi

Não sabes o momento em que te deixaram sem rumo
mas sentiste os operários erguerem o muro.
Vendados não distinguias os rostos.
Só gritos te feriam os ouvidos.
E ficaste surda, enraivecida, desprotegida.

Andaste de pouso em pouso
como se fosses terra em pousio.
E que fazias tu no intervalo do desvio do caminho?
Apareciam umas pessoas com ar maternal
querendo saber do teu sentir.
Antes já sabias as respostas
convenientes, que queriam ouvir.

Licenciavas o sonho nesses momentos.
E vias a casa de bonecas que te sorria
onde morava uma família.
Sabias que eram pessoas de rosto descoberto.
Vias-lhes os olhos enternecidos
e tu morando no seu abraço.

Era assim que desculpavas o teu abandono.
Foi assim que suportaste o silêncio.
É assim que convives agora na casa emprestada
com os meninos e meninas de memórias deserdada.

Adormecias cansada do escuro da noite.
Mas na claridade da madrugada murmuravas:
um dia terei uma casa sempre iluminada.

OF – 29-01-15
(Poema integrado neste evento)

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Relações e ralações


A minha relação com os domingos sempre foi complicada. E continua. É um dia impertinente que me provoca um mal-estar que varia conforme os momentos. Até tenho mais cuidado na escolha do vestuário, geralmente permito-me saborear um docinho e o silêncio que me leva a memórias, são, indubitavelmente, momentos de bem-querença.
No tempo do cumprimento de um horário de trabalho, a relação ficava mesmo feia! Atualmente, não me zango, desespero com a lentidão das horas, com o sossego das gentes preguiçando e o vaivém do tráfego automóvel. Alguma inveja, confesso, num agosto em que imagino um destino a saber a férias. Ainda não desintoxiquei desse antecipado prazer. Somos assim: uma mente aditiva. Por muito tempo, tenho a certeza que ligarei este mês a um longo ciclo da minha vida. Fazer férias, no sentido de conhecer outras paragens, num outro mês do ano, será então o momento da assunção da minha nova condição.
Atento nos cartazes colados no vidro do café. Festas e mais festas. Pelo menos, estreitam-se laços afetivos entre famílias desencontradas no espaço, e, em outras, ganha-se o pão para o resto do ano.
Tenho de rever esta minha relação com os domingos! Ai se tenho! Não faz sentido esta ralação, soando a menina que faz birra no final do dia por não poder saltar um deles…

Odete Ferreira – 17-08-2014
Relações e ralações 2

Este “ter de” tem andado a imiscuir-se nos meus monólogos. Talvez devesse dizer conversas mas, se tudo ocorre dentro do eu, por  que não monólogos?
“Afinal que motivo há para manteres uma relação latente de conflito com os domingos?"
Pergunta insistente, teimosa e indiscreta sempre que abria a janela e o sol me fazia sentir o seu afago na clandestinidade. Mas o raio da pergunta intrometia-se. De nada valia procrastinar o assunto.
E tenho vindo a deitar-me no sofá do melhor analista – que sou eu, claro!
“As circunstâncias podem ser vistas por vários ângulos - segreda-me o sofá - é uma questão de direção…”
E foi assim, tão simples: levei a máquina à revisão, alinharam-me a direção e lá voltei à estrada num domingo particularmente amistoso.
Afinal não há desavenças definitivas, nem verdades indiscutíveis; tampouco ralações indecifráveis.
“Sim, é uma questão de direção…”. Lembrei-me do meu querido Calimero mas, desta vez, sorri. Estuguei o passo em direção ao carro. Caía uma chuva miudinha e não trouxera guarda-chuva.

Odete Ferreira - 08-02-15
Obra de Enrique Monraz

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Vida(s)


Obra de Anabela Faia 

Depositaste-o na minha mão
como quem entrega uma relíquia.
Passara a noite ao relento,
abrigado na folhagem ninho
da árvore que te enraíza à terra.
  
Já passara pelas geadas de dezembro.
Sentiu-se pleno pelo Natal,
ardente no fogo das lareiras,
apaziguado nos sorrisos de gente,
feliz nos doces gestos das crianças.
Ah! E aquele dia em que seria rei,
dono de reinos sem fronteiras.
Como o ansiava! Ofereciam-no
a torto e direito, por vezes de corpo inteiro.

Mas o teu há muito que sobrevivia.
Por partes. Em cada estação nascia.
Nas pegadas de neve do caminho,
nos canteiros de rosas apaixonadas,
nas searas ardentes de desejo,
nas folhas amarelecidas de desmaio.

Depositaste-o na minha mão.
Com a ternura de anos passados
no sonho que trazias sufocado.
Quando abriste o peito engaiolado
na minha mão confiaste o coração.

Apertei-o em contramão e dele fiz caminho.

OF – 14-01-15

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O silêncio de cada dia


Obra de Edvard Munch

- Podes sair. Fico bem…
Ausência conformada num tempo que assaltava o seu pensamento e a esvaziava do discernimento de que não podia prescindir. Libertava os vapores dos sonhos que alimentava mas o vulcão permanecia inativo. A mente fazia um caminho sem chão, emocional, mas teimava em avivar circunstâncias alheias. Aliás, fazia-as presentes, troçando dos gestos que tentavam impermeabilizar as vozes. Mas os sons já a habitavam. Impossível ordenar ordem de despejo a vozes de um além que nada tinha de misterioso.
E assim ia coabitando, sabendo que, dificilmente, se libertaria de uma ausência desejada.
- (…) – resmungou um até logo, em surdina.
Todas as vozes eram silêncio. Uma mudez que se instalou porque acatou regras passivamente. Deram-lhe ordem de prisão. E não se rebelou.
Afinal tinha toda a liberdade delimitada por grades. E (sobre)vivia.
(…) 
“Perfeito! Vamos passar à cena seguinte”. Ouviu, mas, curiosamente não se mexeu…
  
Odete Ferreira – 31-08-2014