sexta-feira, 31 de março de 2017

Do deve e haver


O que mais tenho por aí são dívidas.
Por mais que me esforce, não as abato.
Aumentam, crescem, moldam-se na proporção do meu apego.
Sendo-me corpo e espírito não as quero, nem posso saldar.
Ficaria despida, transparente. Des-me-mo-ri-a-da.
Sorriria, em nome de quê? Ou de quem?
O que digo ou escrevo nem sequer teria assento
no rol do deve e haver do merceeiro da rua onde me fizeram.
E, mais grave ainda, seria plagiada a torto e a direito,
com a indicação de autor desconhecido.
Depois…
Como amar o vermelho se é a tua boca a cor da minha vontade?
Ou os verdes dos juncos se neles não te visse entrançada?
E o rosto recém-nascido que amamenta a crença da minha robustez?
Ou ainda o que aguardo no banco de madeira da minha varanda?
Não, não posso saldar as dívidas legadas.
As heranças são tramadas. Nunca são apenas nossas.
Apenas exercemos os direitos de passagem.
Tomamos-lhes a posse, desposamo-las, fazemos criação
e, aos poucos, delas nos vamos despojando.
Por aí, nos lugares onde as pedras são eternas.
Como as dívidas havidas e achadas.
Famintas memórias.
No mais fundo de mim.

OF (Odete Ferreira) – 02-11-16
Obra de Margarita Kareva

(Vou receber visitas dignas de honras de estado. Cá por casa, segue-se um protocolo rigoroso e agenda será plena de cuidados e AFETOS. É isso: o meu menino vem conhecer a casa dos avós, agora que o tempo já está primaveril.)
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Anunciei a visita. Dela não precisarei de falar. Basta partilhar este momento.


O Ivo, 3 meses, em 02-04, numa das margens do rio Tua

sexta-feira, 24 de março de 2017

Sei do tempo


Sei do tempo pelos rebentos das pedras virgens
e pelos recortes do sol na geometria das traseiras,
redesenhando os canteiros fecundados
em outro tempo de que nada sei.
O que em mim é mistério
revela-se nas coisas simples
e no mundo que invento
pelo olhar de dentro.

Verde, tão verde, é então a cor das palavras.
E o rio, que me lava a alma, toma a cor dos meus olhos.

Silencia-me o canto da terra a subir o tom,
rasga-me o ventre o fruto a fazer-se,
chora-me o orvalho na pétala de cada evocação,
quando este tempo se declara em exuberante paixão.

É estreito o gesto de abrir a janela
e trôpego o passo estremunhado.
Batem asas os pássaros dormidos nos cepos,
que foram árvores encorpadas e desmesuradas
no orgulho de tocarem o céu. Que hoje esverdeou.

Sei do tempo pelo povoamento do pátio das traseiras.
E pelo desordenamento que traz a primavera.


OF (Odete Ferreira) - 22-03-17
Obra de Vladimir Kush

sexta-feira, 17 de março de 2017

Também moro nos olhos das paredes


Também moro nos olhos das paredes
de musgo a adormecer as pálpebras,
sonos profundos como nas histórias de encantar,
onde os finais desenham sorrisos felizes.

Os suspiros, meros sopros de primavera,
bebi-os na liberdade das fontes
e na igualdade das sedes.

Mas há olhos nas paredes
que sofrem invernos de gelos,
pedras de ódio no arremesso da raiva
e o musgo, que seria cama de nascimentos,
vai na enxurrada das tempestades.

Também há dias bonitos nos olhos das paredes
e luas a escreverem poemas líricos e idílicos
quando o amor é apenas amor.

Por isso, os olhos das paredes se atalaiam
no impedimento de vagas de cimento.

É preciso deixar abertos os olhos das paredes.
Onde moram olhos. Para lá dos meus.

OF (Odete Ferreira) – 16-11-16
Arte de Tal Peleg 

quarta-feira, 8 de março de 2017

Não te negues


É de ti o amancebamento com a luz
e de ti o seu nascimento.
Por isso, seguem-te as nuvens plúmbleas 
enquanto fazes o caminho,
num recorte de sonhos com sabor a natal
e fumos de espontâneas lareiras
nos montes ainda enevoados.
Que o calor ainda é pouco
na lenta madrugada.
Fenómeno que te soa a divino
enquanto fazes o caminho.
Sabes-te estrela d´alva
e fonte nascente do amor
que há de ser criação.
Sabes, ainda, de tua resplandecência
quando a noite escurece o dia.
Por isso, não te negues,
quando te chamarem mulher.

OF (Odete Ferreira) – 08-03-17
Obra de Anna Dittmann

quinta-feira, 2 de março de 2017

Do pensamento


Não queria amar-te tanto,
nem ter-te no miolo do meu pão,
em momentos de arrelia,
em circunstâncias pegajosas,
vermes a esventrar a terra virginal…
Amofinas-me, então. E vences.

Acodem-me, lestas, as palavras
e sou capaz de levedar o tempo,
de acomodar o espaço num único quarto.
E todos os instantes que sou
se exultam em ferventes escorrências.

Então, sim, amo-te em demasia
e afadigo-me pelos esconsos corredores da casa.
Transparente e volátil, apareço e desapareço
por entre portas suficientemente abertas,
onde me pulso, me penso e me palmilho.
Me defino e indefino. Subtilmente.

Diz-se dos contrários, o sentimento.
Mas é do complexo, o pensamento.
Árvore perene. Em si mesmo.

OF (Odete Ferreira) – 22-02-17
Obra de Anna Dittmann