segunda-feira, 25 de abril de 2016

E a festa veste-se em cada madrugada

Obra de René Magritte

Há um Abril que se semeia na calçada
lavrando regos a cada passada.
É o renovo a cada alvorada.
De verde marcada. De vermelho anunciada.

E é da calçada o espanto das pressas
percorrendo as ruas de promessas,
não as dos homens, esses abalaram
mas as dos sonhos; esses ficaram.
Sem morada assinalada,
Sem hora anunciada.

E eu quero-me calçada
ecoando a liberdade sufocada
nos montes da minha memória,
nos mares pesados de História,
nas bandeiras desonradas,
nas terras abandonadas.

Ecos a ensurdecer a pacatez,
palavras urgentes a cocegar a mudez,
pombas redentoras a rasgar horizontes,
cravos diferentes a nascerem aos montes,
sóis claros a clarear os empedernidos,
sons do mundo a esperançar os feridos…

…Assim, há sempre vida na calçada
e a festa veste-se em cada madrugada.

OF (Odete Ferreira) – 25-04-16
(E a luta nunca se dará por terminada enquanto houver calçadas espezinhadas...)

Adenda em 01-05-2016


Que melhor homenagem ao 1.º de Maio?
Deixo o link (https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10206066329277381&set=a.2902700046700.2120335.1236440969&type=3&theater ) de quem publicou para o caso de quererem saber dos créditos. Devo estar na foto, mas se não estiver, é como se estivesse. Lembro-me como se fosse hoje. Um mar de gente unida. E eu fazia parte dessa gente. 
O 1.º de Maio de 1974. smile emoticon
Feliz dia!

domingo, 17 de abril de 2016

Obsessão

Obra de Margarita Kareva

Há um pensamento a atravessar
o corpo, a pele, os sentidos,
no incomum de sentir os passos perdidos,
trémulos de ânsias que consomem os fígados,
anunciando o final de obsessão consumido.

É pecado gostar de maçãs,
se na tua árvore reluzem,
convidativas a matar a sede,
suco a viciar o céu da boca
e polpa a selar a promessa do beijo?

Há um arrepio a passear pela alma,
pelos dedos de palavras que afagam,
internadas no hospício dos loucos
onde apenas os olhares e os sorrisos habitam.

É pecado amar deste jeito,
vício afrodisíaco,
alimento obsessivo,
negro chocolate derretido
na concha da tua mão?

Há uma vontade a querer o infinito,
a escrever versos que clareiam o escuro,
ausências que enganam a vida,
vegetabilidade contranatura…

São os ninhos nascentes
que iluminam os caminhos,
nossos,
lavados da culpa original.

OF (Odete Ferreira) – 06-04-16

sábado, 9 de abril de 2016

Apenas mais Ela

Obra de Anna Dittmann

As pregas por cima do joelho eram mais um sinal. No convencimento social, o comprimento do vestuário aportava o tempo para o corpo. Já não tens idade para usar esse vestido que tão bem te fica. Bem, ou de que tanto gostas. Vozes, apenas vozes que ignorava. Os tempos são outros. O tempo, o mesmo. Mas o seu tempo estava nela. Nos olhos. Pensativos, curiosos, perscrutadores, analíticos, desafiadores, sedutores, enigmáticos… Adjetivação para o mesmo nome abstato. Espírito. Por ele se entregava ao amor. Como papoila a seduzir as hastes do centeio com avidez e cupidez; estrela a namorar a lua; cavaleira a desejar o pódio da intemporalidade; pássaro a debicar a semente do desejo; deusa a pedir poemas de beijos; poema de rio cheio; sorriso boquiaberto; espanto de criança; vestidos de menina pregueados de anos decorridos. E vento. Tanto que a fazia esvoaçar entre nuvens a brincar ao esconde-esconde…
E a convicção de que, quanto mais de Ela assumisse, mais são seria o fruto do seu ventre.

Odete Ferreira – 30-08-15  

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Tempos Pérfidos


Obra de Brooke Shaden

Travam-se de insanas razões os ventos,
desencontros nas suas profecias.
Púlpitos abertos a serventias,
cobiça e egoístas proventos.

Calam-se as sensíveis brisas atentas,
serenas, certas de sabedoria.
Resguardam-se de malfazeja euforia,
Acalentando manhãs sonolentas.

Matam-se os arautas do comum senso,
e as vozes de mentiras descaradas
convencem as ovelhas tresmalhadas.

Caem vítimas sob manto denso.
Dão-se hosanas às barbaridades
e até as mentiras são inverdades.

OF (Odete Ferreira) – 30-03-16

(Antecipadamente, agradeço a todos a presença no meu espaço e os preciosos comentários com que me brindam. Grata, sempre!)