sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Em duas penadas

Obra de Emilene Frigato

Boas Festas

E a porta abriu-se
no pressentimento de boas novas.
Havia tempo que os amigos
se haviam reunido em silêncio
e podado as roseiras com as mãos da ausência.

Ficaram os versos e os sorriso, disseste.
E os passos e os gestos, acrescentei.

A mesa assinalava a natividade,
ainda intocável, como lugar sagrado.
Nos lugares vagos, estariam os filhos da casa,
medindo as palavras,
sossegando as lágrimas,
enganando o tempo .

Abriu-se a porta
ao largo sorriso do abraço
e às histórias que trazia no olhar
e à boa nova de um menino a nascer.

Foi o melhor presente, a chegada,
a luz que faltava na árvore de Natal,
um sopro de ânimo na alma apagada, dizias.

Mais tarde, na mesa, as Boas Festas levadas,
teriam o brilho de noites estreladas.

OF (Odete Ferreira) – 28-12-16

Em duas penadas:
1 – “Há tantas formas de sermos humanos”. Apanhei esta frase no episódio III do documentário “Humanos”. É precisamente sobre o significado do termo humano que importa falar, exaustivamente, até que se enforme em guião, manual de primeiros socorros ou de sobrevivência, para que ninguém ouse invocar o desconhecimento da sua abrangência. Afinal, parafraseando, há tantas formas de sermos inspiradores!

2 – Conduta: o termo que prefiro a valor. Na verdade, o primeiro implica ação, o segundo, é antes de mais, conceito. Sou de palavras, gosto de as desenhar e de as esmiuçar. Como arte. Mas, se elas não se moverem em direção ao outro, que razão houve para serem inventadas? Um dia, talvez me alongue nesta reflexão. Por agora, deixo-me em gestos e sorrisos, desejando que 2017 (vos) seja profícuo em atos humanos. E se forem borbulhantes, ainda melhor! Dancemos e cantemos! Afinal, todos respiramos pelo mesmo pulmão!

Odete Ferreira, 29-12-16
Obra de Leonid Afremov

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Sopros de (Ad)vento


  Christian Schloe

Nos últimos tempos, presenteava-a, frequentemente, a memória com a fábula da cigarra e da formiga. Não que a figura tipo da cigarra a incomodasse, tampouco algum disfarçado sentimento de inveja. Sempre fora formiguinha e o que “não deixes para amanhã o que podes fazer hoje” funcionava como prenúncio de que o (seu) mundo poderia acabar a qualquer momento. Tudo, então, devia estar organizado. Por si e pelos exemplos da vida, o seu espírito de formiguinha prevalecia. Nunca saberia quem poderia chegar para ajuizar daquela pessoa cujos espaços e objetos ficaram vagos da sua presença. O caos só lhe era apetitoso no plano das ideias e motor de permanente interrogação retórica.
Contudo, nestes últimos tempos e nos próximos, sabia, chegava a gratificar-se por assim ser. Julgava mesmo que a sua intuição era uma espécie de dom. Afadigava-se pelos carreiros da sua vida como veículo todo terreno. As prioridades geriam-se por si, inconscientemente, funcionando como empresa em contratação de outsourcing. Tudo se tornara urgente e a economia da sua narrativa obrigava-a a uma engenharia emocional, não isenta de um sentimento de falha. Por mais que desse indícios da necessidade de fazer opções, havia sempre julgamentos apressados. Normal: este tempo tornou-se desatento, flácido. Se o exercício físico exige esforço, força de vontade e outros, por vezes, desmandos, o que não exige o exercício mental!
Felizmente, há exceções; como o jovem Tiago que, já lá vão vinte anos, observando os seus apressados gestos, numa quietude interrogativa, dissera “Sempre quero ver como é que hoje nos vai surpreender…”. Se antes já o sabia, naquele momento não restaram dúvidas: haveria sempre alguém a ter um olhar que capta a essencialidade das pessoas e das coisas.
(...)
E cuidara: espaços e tempos; pertences e pertenças; dias e noites; risos e lágrimas; corpo e espírito; silêncios e ruídos. Doseando, temperando e temperando-se.
Depois, de supetão, foram as histórias de finais felizes que a surpreenderam, premiando-a, vivendo, porque não têm prazo, os contos de fada e o sonho eternizado no seu enredo.
Por isso, nestes últimos tempos, o trabalho de formiguinha ganhara espaço. Dera outro uso a tudo o que, para as suas necessidades, ficara fora de prazo e fora acomodando o novo com o desvelo da mãe coruja. 
Em breve as achas crepitariam. Em breve seria Natal…

Odete Ferreira – 18-09-16

Vladimir Kush

Advento

Quando, por estes dias, o frio
me percorre em bafos quentes,
tocando de leveza os passos miúdos,
num alvoroço quieto, numa espera serena,
atentando nas miudezas das ruas,
limpas, clareadas, donde, por algum tempo,
as sujidades são enxotadas,
acrescento-me de palavras que esqueci,
aguardando, por estes dias,
a revelação da emoção plena,
supondo-a como rebentação
das ondas desprendidas das águas,
onde se fizeram corpo e espírito.

O meu olhar, por estes dias,
acenderá dezembros de luz.
A gotejar, sempre que me perder
na fascinação íntima do ser a nascer.

Quando, por estes dias,
o frio for fogo a arder no meu peito,
e a bênção do céu à terra descer,
saberei do teu cheiro e do sabor a Natal.

OF (Odete Ferreira) – 07-12-16

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Orfandade

Obra de Edvard Munch

Há nas horas de chumbo
mãos de criação de infortúnios
que descuidaram o ninho, a casa
e até a rosa abrigo, fortaleza delicada,
quando nada mais restava
senão a promessa do azul
em horas desabrigadas
do sopro que acalenta
– e resguarda.

E as pedras são apenas pedras
nuas de poesia, desgastadas e abafadas
pelos ais do silêncio do dia.

E a casa já nem precisa de gente
se os braços deixarem de ser carne
e os pássaros feridos se perderem
no desatino da gente.

Há nas horas de chumbo
orfandades a cobrirem crepúsculos
com telhados de vidro.
Que quebram no rigor do inverno.

OF (Odete Ferreira) –23-11-16

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Gente de largo chão

Obra de Paula Rego

Cala-se a voz, emudece um povo,
chora a terra, enluta-se um país,
nódoas de dor, olhos de gato judiado,
teias de sublevação a nascer
quando das escuras es-quinas
espreitam tochas a refulgir o brio perdido.

Silenciosas noites, fervilhantes poemas,
metáforas encapuçadas, hipocrisias descaradas,
bailados de cadeiras, tiranias apalavradas,
quando pela palavra se amordaça a língua.

Afoitam-se os passos nos paços dos abutres
esperando a madrugada redentora.

Há um cravo vermelho na seiva primeira,
cravado na espinha dorsal da Lusitânia,
no jardim de pinhais e cânticos de vontade
donde os rijos mastros saíram para navegar.

De vez em quando amoucha-se o cravo vermelho
e o sangue que o alimenta esvai-se de vergonha.
De novo, tremem os passos nos paços dos abutres,
chamando a madrugada redentora.

A liberdade medra em terra de pão,
a independência é gente de largo chão.

OF –01-12-16

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Passagem

Obra de Brooke Shaden

“Todo o mundo é composto de mudança” – verso locomotiva de Luís Vaz de Camões, verdade incontestável, asserção sem tempo e idade, porventura a génese e marca do conceito mundo. Hoje, acrescenta-se ao discurso o adjetivo vertiginoso sempre que a mudança escapa a qualquer tipo de previsão, como se os fenómenos tivessem ADN próprio e a mão humana estivesse já condenada à morte em vida.
Um dado novo, assustador, visto vivermos a perenidade e não a caducidade.Se é certo que, ao longo do ciclo de vida humana, o instinto de passagem nos leve a preparar algumas perdas, comandando os nossos atos de esvaziamento para dar lugar a outros enchimentos, fazêmo-lo como herança do(s) lugar(es) onde estivemos.
Ontem, foi mais um dia de passagem de testemunho, rasgando registos de tanta vida profissional, de tantos lugares e de tantos rostos. São atos corajosos, altruístas. Conservar estes registos não passaria de mero egoísmo, quiçá algum narcisismo. Tão belo, tão criativo, tão avançado para o tempo… Que orgulho na repescagem de partilhas, de deslumbramentos mútuos! A par, ocorria-me, sobretudo se hesitante: tudo o que fiz foi uma espécie de doação de órgãos que se foram regenerando até ao momento em que os rostos da ensinança deles precisaram. Vivo neles, não nos registos. Elegi-os fiéis depositários, por isso nem sequer foi doloroso. Os rostos, impressos em folha A4, conservei-os. Ainda me é importante ligá-los ao nome. São identidades da minha identidade. São jovens, homens ou mulheres, que eu saiba, praticantes de boa vontade, dotados de espírito crítico.
Mesmo que muitos não se dirijam às urnas de voto para exprimir a sua vontade, sei que, na sua vida, só cabem as mudanças que dignificam as pessoas. E sei que, muitos, mas muitos, não caem facilmente na cantiga do bandido. É nesta crença que tenho um dos meus sentidos de vida.

Agora, por ali estão, devidamente empilhados, os dossiês, nus de registos. Rasgos de luz. Ressurreição. Depois da passagem…

Odete Ferreira em 10-11-16 

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

sábado, 29 de outubro de 2016

Sangramento(s)

A morada

Ainda com a indolência própria dos gestos preguiçosos de noites repousantes, abri as janelas que dão para a parte do jardim mais arborizada. Um pouco antes, no escasso tempo que os passos percorreram entre a copa e a cozinha, chegara-me, nítido, o chilreio da passarada. Estava habituada a ouvi-lo, mas não desta forma. Entre a curiosidade, a surpresa e a inquietude, saindo para o exterior, desafiando a frescura da manhã enevoada, quedei-me, atónita, confesso, na contemplação daquele quadro inusitado e inquietante. Os pássaros voavam de um lado para o outro num alvoroço confrangedor. Compreendi os sinais como se fora um deles.
Sem aviso prévio, haviam sido despejados da sua morada. E exprimiam a sua dor. Numa revolta que não poderia reverter, nem tampouco amaciar. Eu tivera tempo para me preparar para a mudança. A razão tivera tempo de preparar a emoção da perda. Irreversível. Imperativa há muito, mas que fora adiando. Afinal não havia sido responsável pela plantação de árvores de grande porte no jardim. Confiei no saber fazer de jardineiros. Agora, avisada pelos tempos de constantes enganos, já me precavo e negoceio as regras para o meu território.


Passou-se no meu quintal, hoje. Quantos quintais do meu país a sofrerem a desfaçatez da incompetência e da negligência! Quantos quintais a precisarem de um planeamento holístico! Urgente evitar dores. Todos somos Terra! Felizmente, há outras moradas por ali. E este pensamento aliviou-me, tal como a notícia que ouvi, quase em simultâneo ao narrado, de medidas que vão ser adotadas, preventivas da calamidade dos fogos. Coincidência? Não. Apenas necessidades e urgências. Apenas os gritos da Terra a imporem-se, antes que, como escrevi no poema Ardem-me os olhos :
Será a mãe nossa que pedirá algozes,
antes que todos os filhos nasçam estropiados. 

Odete Ferreira - 27-10-16

Adenda em 28-10:
Hoje, apressei-me a abrir as janelas. O chilreio da passarada havia retomado a sua cadência normal e o voo era apenas voo. Como bons vizinhos, as moradas desocupadas acolheram novos inquilinos. Senti-me mais leve. 

Fotos: Odete Ferreira

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Desceu-te a noite

Obra de Edward Hopper

Desceu-te a noite. Mas era tão clara
a hora marcada nas tuas primaveras.
Tremor a travar teus ruidosos passos,
os francos sorrisos. Até a pressa
da raiva, no momento.

Assaltou-te a mudez. Tu que eras
a loquacidade de todos os espaços
e a promessa das vozes perdidas
nos becos. Escuros. Mas onde
deixavas archotes vivos.

Cobriu-te a dor. Ferida exposta
a tantos rostos desconhecidos,
mas iguais na nudez do corpo,
nas marcas disfarçadas pelos cuidadores
da dignidade arrancada – quando? –
na emboscada da vida.

Pesou-te a derrota.
Capitulou o orgulho de seres.
Visionaste o fim do império construído.
O vale, onde as lágrimas eram criação,
secou-te o húmus e perdeste a fé
na eternidade dos montes. Teus!

Visitou-te o rio. Dele bebeste
a força de todas as nascentes
e as palavras que o homem inventou
para se ancorar.
E nele lavaste a roupa ensanguentada.
Vestida de branco e olhar de lua,
estendeste o braço. Pacientemente.
Naquela sala, iniciaste a luta. A tua!

OF (Odete Ferreira) – 19-10-16

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

sábado, 1 de outubro de 2016

Nunca saberei dizer-te adeus

 Obra de Lauri Blank

Nunca soube dizer-te adeus.
A magnitude da tua luz
ofusca o meu próprio brilho
e só em recantos escuros
surjo vestida de branco
e pele curtida pelo teu tempo.

Há um durante que esbofeteia
a inércia acumulada pela tua ausência.
Toco as marcas da tua presença
como languidez de noites possessas,
como dança em ondas espreguiçadeiras,
areal de branda ondulação,
sussurros inconfidentes,
enquanto
me tomo de água, ar e vento,
esvoaçando
entre tules azuis
e o azul do teu olhar
límpido
apenas turvado pelas miragens
onde me afundo.

Guiam-me as velas de cheiros
e a música intimista
que vagueia pelo sentido de mim.

Nunca saberei dizer-te adeus.
Enquanto for, ser-te-ei fiel.
De uma fidelidade entalada no berço do sono,
entre estações
que se revezam numa espera serena.
E brindo, despedindo-me.
E brindo, vestindo-me de outras cores.

OF (Odete Ferreira) – 21-09-16

Não costumo pedir nada mas, desta vez, atrevo-me: quem passar por esta partilha e não tenha estado nesta http://portate-mal.blogspot.pt/2016/09/visitacao.html
gostava muito que  não a ignorassem. Obrigada.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Se nevoeiro fosse


 Obra de Enrique Monraz

Se de nevoeiro se tratasse,
bastava esperar que o tempo aclarasse…

… mas…

É névoa permanente a mágoa consistente,
lodosa água a turvar a nascente
da limpidez da imaculada morada.

A alma, lugar de todas as imanências,
se maculada, faz pousio na secura do vazio
e os gestos vestem a nudez do desapego.

Não há rio, corrente, sequer fio de prata
que lave a neblina de turvado olhar,
perdido em terras de ninguém…

… Tampouco…

O sol nascente para lá do horizonte,
a lua em quarto crescente prometida
branqueiam o enevoado espaço de dentro.

Se apenas dos dias o nevoeiro fizesse parte,
eram as noites que faziam os (nossos) dias.

OF – 14-09-16

Não costumo pedir nada mas, desta vez, atrevo-me: quem passar por esta partilha e não tenha estado na anterior, gostava muito que  não a ignorassem. Obrigada.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Visitação

Acontece ter-te
antes do teu grito terreno
pelo amor que me é íntimo
num ventre onde fecundo é o sentimento.

E verte-se uma ternura macia
a lavar a pureza que me renova.
São breves os instantes da aparição,
como reflexo fugidio em águas turvas de um rio.

E o todo é imenso,
ainda que as formas sejam difusas.
E como te sinto e te amo
na linguagem terna dos movimentos;
dança improvisada de gestos
que retenho na distração do sonho.

Ausentes eram as cores dos lugares,
apenas de azul era o espaço.
Uma estrela, a tua existência
que guiava e preenchia
o ninho do meu abraço.
Que em mim se quedou,
não fosse espantar o sono dos puros.

Componho estes versos imprecisos
antes que a memória se cale
na espera do teu grito terreno:
vIVO, pulsante, como luz
de solstício de inverno.


OF (Odete Ferreira) – 16-08-16 

Rui Simão (filho) e Patrícia
Foto de Rui Simão
(Nesta postagem tentarei responder aos comentários)