quinta-feira, 24 de março de 2016

Na memória de ti


(...)

Ainda te vejo sentada à lareira na casa térrea onde tudo estava ao alcance da mão. O louceiro, a pia, a arca do pão. Defronte da casa, tendo o calor do sol nos dedos, treinava a caligrafia nas cópias encomendadas pela professora. Uma cadeira servia de secretária; um banco de madeira, à medida da minha pequenez, amaciava as horas que ali passava. Desenhava as letras a tinta permanente. Ainda hoje me escapa a razão desta paixão. Talvez porque realçasse a cor preta das letras no papel, embrumando-me os olhos, agitando um sentir que, penso, saía da alma. Sempre tive mundos que gizava e me bastavam. Criava-os e recriava-os. E tu foste a principal causa desta efervescência. Alimentavas-me o espírito. Eras espírito num corpo avantajado, já um pouco encurvado, orlando a floresta do fogo crepitante. Quem sabe se não havias já dançado num ritual de espiritualidade em outra vida? Eras tão crente e seguidora de rituais ancestrais! Todos os anos, na semana santa, me avivavas a memória, com casos acontecidos quando não se respeitavam. Como aquele de se ver a cara de Cristo no lençol do estendal porque fora lavado na quinta-feira à tarde. Durante anos, respeitei escrupulosamente o tempo pascal. Se o não fizesse, sentia que estava a trair a tua memória.
(...)
Odete Ferreira
(Uma breve passagem da narrativa "Na memória de ti", publicada na Coletânea "A Despedida" da Editora Papel d´Arroz" -2015)

Por esta altura, a avó paterna vive comigo estes dias. Desde os meus dezasseis anos. 

quarta-feira, 16 de março de 2016

Gestação


 Obra de Christian Schloe

Ainda aconchegadas no ventre materno,
esperando a gestação do tempo
numa calmaria aparente,
enquanto a montanha se oferece
ao acasalamento do calor solarengo
e o rio lá em baixo aguarda o parto,
as sementes, com amor plantadas,
vestem-se de púbis verdes,
anunciantes das mulheres de esperanças
porque delas nascerão primaveras.

Ainda me sobram as escuras vestes
no corpo ao tempo subjugado,
mas já são claros os olhos
que desassossegam a pele
quando, por fim, termina a gestação.

OF – 22-02-16

terça-feira, 8 de março de 2016

O verde nasce de ti

 Obra de Christian Schloe

Queres-te serena na contemplação muda
do universo que te muralha,
onde todos os desconfortos
te são confortos no sorriso de te saberes tu,
pilar onde assentas os tijolos vermelhos
das paixões que te efervescem a pele.
Uma casa, caleidoscópica,
onde és senhora e servil,
inspiradora, curadora,
âncora de destinos peregrinos.
Um chão onde fermentam afetos
a fazer o pão de tantas vidas.
Nada em ti é em vão!
Mesmo que te percas na temerária imensidão,
retomas o caminho vigiando as raízes.
São elas que te nomeiam,
em género e número.
Raiz. Raízes.
Cabelos que protegem o mundo,
De si próprio, também.
Por isso, mulher, a tua muralha
é um farol verde.
Serena, pousas a cabeça na cadeira de braços.
Verde. A cor de todos os espaços.
E fazes acontecer. Mesmo em tempo de repouso.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Cantar de amigo

 Obra de Pierre Auguste Renoir

Se pudesse ter-te como queria
e abrir-me como flor n´alvorada,
decerto que o coração se veria,
assim como minh´ alma enfeitiçada.

Correm águas num fluir remanso
e as esperas apossam-me os sentidos.
De divina vontade m´esperanço,
e rosas cobiço em jardins proibidos.

Como em antanho num cantar d´amigo,
perguntando ao mar pela tua chegada,
dormindo a esmorecer de noitinha,

assim me partilho em dor contigo,
crendo que serei sempre tua amada,
morrendo-me de ti em fonte minha.

OF – 27-02-16