quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

A dor


Obra de Josephine Wall

Tenho pensado muito na dor. Essencialmente a física, a que sabemos localizar, a que sabemos descrever com bastante precisão, desenhando um rosto que nos faz caretas de gozo, apetecendo espantá-lo com as armas da infância: as pedras do terreiro, sempre ali à mão de semear.
Mas já não há terreiros. As pedras e as pedrinhas – por vezes só queríamos um tantinho de espanto, mais a ameaça do que o alvo – jazem em cemitérios invisíveis, substituídas pelo efeito da beleza formal. Os terreiros capitularam face às pracetas; as pedras toscas, lapidadas a jeito dos novos tempos, tomaram formas regularizadas, possibilitando desenhos artísticos. Continuam pedras, apesar de novas identidades. Só que já não estão à mão de semear. E a dor continua a ter rosto. Um rosto que se pode tornar mais atraente, buscando os remédios que os fazedores de milagres – uma extensão do Santo Graal – disponibilizam no mercado, guerreando-se com a dispensa dos cavaleiros da Távola Redonda.
Contudo, nunca nenhum ganhará a corrida contra o tempo. Contra a inexorabilidade da condição humana. Contra as marcas da dor. Contra a dor. E a verdade é que não sei se serei tão estóica quanto isso, quando ela me vier visitar e resolver habitar uma qualquer dependência da minha casa. Intuição ou tão só o medo que nos acompanha desde os primeiros passos. Não sei. Mas a que vejo em rostos que me são muito próximos, parecem-me sinais de fraqueza. Ou uma antecipação dela. Ou um processo de reforço do sistema imunitário.
Em todo o caso, sei que de nada me serve a frase feita “não sofrer por antecipação”. Mas sei, igualmente, que é preciso fazer do momento, o momento. Apurar os sentidos. Adotar um olhar de lince para atravessar os nevoeiros com passos seguros.

Odete Ferreira – 10-01-16 
(Ultimamente "desapareceram" sete seguidores do blogue. A que se deverá este fenómeno? Foi apenas um alerta. Já outros usurários da blogosfera se queixaram.)

Adenda em 28-01-16
Com 18 anos. Hoje, são 79. Parabéns, mãe!

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Surreal 42

Este chão molhado
-água que foi rio-
ensopado do pão
que um dia foi
seara de amarelos de tela,
é pertença do céu.
Apenas em alguns dias do ano
se transforma no vinho da terra
servido em cálices de chuva.

Sei de lugares onde as bebedeiras
caem em forma de rituais.

Por outro lado, é no tempo da ressaca
que jazem definhados os ais.


OF (Odete Ferreira) – 09-01-16

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Olhares

Obra de Anna Dittmann

Precisos, assim pareciam os encontros
antes de nos olharmos no lusco-fusco
das madrugadas preguiçosas.
Nada parecia ter mudado,
os socalcos já vindimados
abriam clareiras ao sol desmaiado
e o horizonte parecia mais infinito.

- Vês, ali havia uma casa de pedra
e um alpendre onde merendava,
dizias em ais humedecidos.

E eu lia! Com o meu olhar:
em cada pedra a ternura
de uma terra que te alimentava,
o sonho que me enternecia,
o telhado que se abria
à claridade do amor
que agora me entontecia.

- Vês, aqui está a fonte,
fino veio prateado
que engrossou o meu rio,
nas longas horas da espera.
Olhar límpido e fortalecido
em cada madrugada de promessa.

Imprecisos, assim são os encontros
depois de nos olharmos
na claridade das manhãs prometedoras.


OF (Odete Ferreira) – 07-10-15