domingo, 30 de novembro de 2014

Reinventar momentos



O espaço prepara-se devagar apesar de mãos afadigadas.
Há urgência no desnudamento das árvores. O inverno, já cansado do cerco outonal, das cores fulgurantes de paixões acesas, precisa depositar o sémen branco em cópula de amores calmos. É o seu tempo. É a sua natureza. Sabe que, daqui a uns meses, nascerão rebentos esperançados no verde da terra.

Entretanto, há mãos doces que se deleitam no alisamento da rugosidade das folhas: umas imaculadas, resguardadas em espaços abençoados, outras espezinhadas nos caminhos palmilhados -  há sempre mortes ainda que involuntárias.

Mas o espaço prepara-se devagar. Pincelado aqui e além. Sem surpresas. As cores de mãos afadigadas libertam o vermelho e o dourado. As formas são recriadas. Já nada há a reinventar. Acredito que apenas o espírito. Esse todos os anos se sente diferente. Irrepetível, ainda que os gestos se façam iguais e da boca saiam palavras desgastadas pelo uso.

Na causalidade das coisas será a alma a reinventar os momentos. E é neste espírito que preparo o espaço. Devagar. Tenho tempo. Só amanhã será dezembro… 


Obra de Lula Cardoso Ayres
Odete Ferreira (OF)
30-11-2014

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Momento(s)


Obra de Pawel Kuczynski

Momento(s) - XXX

A vida aparece de sopetão.
Engano nosso se pensamos tê-la na mão.
Por isso os caminhos são tão sinuosos,
preguiçosos,
sorrateiros,
matreiros.
Raposas de orelhas arrebitadas,
rindo a bandeiras despregadas
quando o corpo marca marcas zangadas.

Raiva centrifugada
num processo mental.
Escorre liquefeita
enformada numa alma
depurada da maleita.

E segue-se outro caminho,
diferente do indiferente
mundo de verbal diarreia…

OF, 27-06-14  

domingo, 16 de novembro de 2014

Tens o milagre na mão


Obra de Hélio Schonmann

Tens o milagre na mão,
gesto de ternura efusivo,
queima-te o rosto já tisnado,
pedaços de sol escondidos
espelhada terra dos teus sentidos.

Sentes a raiva da ausência.
Da flor, do aroma, do sabor.
Do fruto, do tato, do amor.
Mas tens o milagre na mão!
Alongas-te no mágico infinito
e sacias a flor e o fruto proibido.

Procuras a sereia na seara.
É o mar que te entontece.
Vês  azul no lugar do verde.
Mas tens o milagre na mão!
Sulcas um leito de espigas
e na sereia adormecida te deitas.

Palmilhas trilhos de desejos.
Caminhante de cajado calejado.
Páras cansado de insanos ensejos.
Mas tens o milagre na mão!
E dos trilhos fazes caminho
direto, tela retocada do teu paraíso.

Tens o milagre na mão…
Beijas o sol íntimo amigo.
Acaricias  o ventre de lua cheia.
Apascentas o rebanho de estrelas.
Teces poemas nas tardes demoradas.
Acolhes o repenicado pio da passarada.
Tocas o piano da natureza matizada.

…E no milagre da tua mão
prendes a musa sedução…

 OF –  30-05-14

sábado, 8 de novembro de 2014

Perfil


Obra de Edward Munch

Gosto do teu perfil. Vasculho numa gaveta da mente algumas peças com que o possa vestir. Mas os adjetivos já estão gastos e quase em pó. Parece que foi a traça. Não arejei o suficiente. E foram-se evaporando, caindo nas mãos de quem deles precisava. Por isso, não te posso adjetivar. Ficarás a pairar no limbo do incognoscível.
Mas o leitor é sempre um  voyeur de palavras. Atira-lhes um olhar sorrateiro, primeiro, mas depois é mesmo descarado: vocifera quando não faz uma pálida ideia de ti!
E que culpa tenho eu?
O verbo, o verbo é que te incorpora. O teu perfil é um verbo. Mais precisamente verbos e neles me enredo. Pensas, ages, falas, aconselhas, enrijeces, enterneces, perscrutas, indagas, sentes, despes e amas. Sem ordem, sem prioridades. Simultaneidade! Talvez consiga percecionar tonalidades no teu perfil. Mas deve ser da luminosidade do momento. Ou da minha visão distorcida, permitida pelo caleidoscópio em que a minha alma te revê e te vê.
És um perfil verbal, mesmo quando fazes o teu caminho. Intenso de odores que foste aspirando em todos os seres vivos. Por isso te cumprimentam quando medes os passos. Não pisas. Danças na brisa da magia dos instantes.
Perfil enigmático que vai para lá dos séculos. Como o universo. Como o sorriso da Mona Lisa.
E, tal como tu, fundo-me na simultaneidade dum tempo impreciso, algures num espaço rarefeito.

Odete Ferreira – 08-07-2014