domingo, 5 de maio de 2013

Mãe, hoje escrevo o poema da nossa vida



Nunca te escrevi,
mas recordo…
Sentada na soleira da porta,
em dias de estio, sufocantes
dando pontos na roupa
– que bem ficava –
unindo pontos de sonhos
que sonhavas
no silêncio dessas tardes.
Chegava da escola,
cheirava a requeijão.
Comias, deliciada.
Meu irmão acompanhava
mas eu detestava.

Nunca te escrevi,
mas recordo…
Encurvada no chão que esfregavas,
limpo de nódoas, cheirando a rosas.
Acocorada no lavadouro
improvisado.
Pedras irregulares de um rio juncado
salteado de águas estagnadas,
insalubre. Mosquitada
que sacudias das faces cansadas.
Roupa alva que eu espalhava
pelos jogos de formas ovaladas.
Em fantasia era personagem heroína.
Ali, era já mulher menina.

Nunca te escrevi,
mas recordo…
a mulher de força anímica,
na arena da vida lutadora,
a mãe de coração aberto
que cedia, a meu pedido,
a malga de caldo à amiga
da escola. Na sacola pão,
queijo e azeitonas. O caldo
aquecia-lhe o magro coração.

Nunca te escrevi,
mas recordo…
A funcionária zelosa,
a vizinha prestimosa,
o olhar expressivo,
o cabelo em carrapito,
a roupa sedutora
a atitude generosa,
o sorriso acolhedor
num sentir sofredor.


Hoje escrevo
o que és, mãe!
A casa do teu ser,
o sol de cada amanhecer,
o legado de um passado,
o presente, em mim, incrustado…

OF - Foto Odete Ferreira
Poema incluído na Coletânea Mãe 2013

10 comentários:

  1. Como não haveria ela de reagir?:)
    LINDO!
    bji, querida

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    1. Ficou sem jeito, com uma lágrima no canto do olho, Nina. Foi uma surpresa quando lhe ofereci o livro...

      Bjo, princesa :)

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  2. Emocionei-me por demais Odete! Aqui será nesse próximo domingo e as saudades...aff apertam mais. Espero que tenhas tido um domingo de mais felicidade junto aos seus.
    Beijuuss

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    1. Sei como te tocam os momentos relacionados com a mãe. Dá para perceber muito bem, quando te leio.

      (Foi um bom dia, sim! )

      Bjuss, querida RÊ :)

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  3. E vamos perpetuando o papel e o legado dessas nossas heroínas tão próximas, tão íntimas.
    Bela e comovente homenagem, poesia sensível que consegue retratar a memória afetiva.

    Beijo (Odete?)!


    ;)

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    1. Obg pela que deixas, Canto da Boca. Somos sempre um legado de tantas coisas. E a memória a sua materialização...

      Bjo, amiga :)

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  4. Lindo e emocionante...

    "O presente, em mim, incrustado..."

    Como te compreendo,esse sentir,assim...

    Beijos,querida Odete!

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    1. Sei que tens na tua mãe o teu guia emocional e afetivo, querida Suzete. Compreendemo-nos...

      Bjos , amiga :)

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  5. A poesia insinuou-se no ribeiro, na alvura da roupa, nos pontos cautelosos, nos lanches saborosos
    no olhar
    na atitude.

    A ternura saltou de ti para a tua mãe e da tua mãe para ti. A ternura que se vai escrevendo todos os dias.
    Adorei esta nuance poética, este filme que mãe e filha guardam docemente no coração.
    Sabes como me emociono quando o coração escreve desta maneira.
    Bjuzz, querida amiga Odete.

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    1. Vou-me repetir. Também sei do teu intimismo com a herança matriarcal, seja a mãe, seja a avó. Gravamos os toques, os cheiros, os horizontes que víamos ou adivinhávamos no olhar...

      Obg, querida Teresa.

      Bjzz :)

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