quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Crónica de um insólito anoitecer na Invicta

Noite lacrimejante pelos chuviscos que levam os olhos a solidarizar-se com o tempo que nos ensopa as roupas descompostas pela brisa agreste. Candeeiros profusos conferiam ainda um ar natalício à praça. Muitos transeuntes, pessoas aparentando o turismo que o Porto já reclama para si. Conjecturas, enquanto aguardava o meu transporte junto a uma praça de táxis. Não faltava muito para as vinte e trinta.
O sotaque português falado no Brasil obrigou as minhas orelhas a rodar a cabeça, a observar uma família que se passeava com o vagar ocioso do tempo de férias. Um dos elementos questionou algo a um transeunte e quase de imediato foi interpelar um taxista.
A patriarca da família, senhora bem arranjada numa simplicidade que casava bem com o seu ar tranquilo, deve ter adivinhado que a minha curiosidade precisava de alimento. “Você sabe como fazer para ir para a baixa?”. “Bem, na baixa praticamente já estamos…”. E desatei, num fôlego, os nós que poderiam criar obstáculos. Simplifiquei. A conversa brotou naturalmente entre todos nós: eu e a família (marido, filho, esposa e neta).
Donde eram, o porquê da escolha do Porto… A moça, uma jovem de uns 15/16 anos, viera conhecer o país onde nascera. À data, o pai jogava num clube portuense. Quando disse que tinha família no Brasil, os sorrisos uniram-se na cumplicidade da língua comum…
“Ah, espera aí, acho que tenho comigo 50 reais. Cá não valem nada”, disse num impulso. Abri a carteira e, como se de uma cartola se tratasse, de lá saiu a nota. O sorriso abriu-se num olhar surpreendido, verbalizando “É mesmo para mim?”. “Claro, a mim de nada serve. No Brasil ainda dá para alguma coisa de jeito?”. “Se dá! E muito, um sapato uma camisola…”, ripostou o avô, um senhor de voz doce e postura gentil.
Por largos minutos, ali ficamos trazendo na conversa um pouco de cada um de nós.
Inusitado, este encontro tornou o anoitecer na invicta um dia especial.
Afinal o que receia o ser humano na abordagem a um semelhante? O medo que começa a fazer parte de uma estratégia global de insegurança pessoal! E assim se vai corroendo o que é basilar: comunicar, aproximar, estreitar a distância entre seres humanos.

Odete Ferreira, 24-01-2014 – Foto Odete Ferreira

10 comentários:

  1. É muito importante para o planeta essas atitudes de aproximação, entre os irmãos! abraços

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  2. Já me tinhas contado, mas estava com vontade de ver este precioso momento no bom ritmo da tua escrita. Faz falta a naturalidade da comunicação. Enriquece-nos, é verdade!
    Bjuzz, amiga Odete. :)

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  3. O melhor que a vida nos pode dar vem das pessoas.
    Da sua aproximação, por isso, quase sempre acontecem coisas interessantes.
    Tenho muitas histórias parecidas, mas as mais interessantes aconteceram de avião, onde ouvi histórias incríveis durante 2 anos, numa altura em que viajava quase todas as semanas.
    Obrigado por teres partilhado esse anoitecer na Invicta. Gostei de a ler.
    Odete, minha querida amiga, tem um bom fim de semana.
    Beijo.

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  4. Estamos em contagem regressiva para o grande momento da festa da Ilha da Lindalva...
    Onde saberemos quem será o top Blogueiro de 2014.
    Renovo o convite para a sua participação no voto ao Top Blogueiro 2014, cuja a votação se encerra a meia noite do dia 10 de Fevereiro.
    E a você, que ainda não votou, fica o meu convite de honra: Venha e participe conosco deste momento. Quero que saiba que, tê-la(o) conosco, alegrará não apenas o coração da Lindalva , mas também o coração dos blogueiros participantes
    Nós blogueiros participantes contamos com o seu voto
    Podendo votar somente em um blog.
    http://ilha-da-lindalva.blogspot.com.br/

    Desde já agradeço
    Bjsssss

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  5. Comovente crônica de uma vivência da tua bela humanidade e sensibilidade

    ao encontro com os semelhantes. E cada dia a humanidade congela diante

    do gesto de solidariedade.

    Belo gesto,amiga!!

    Beijinhos.

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  6. Eu fico embevecida e com os olhos marejados d' água, de tanta saudade do meu Porto querido, lugar que me acolheu em minhas andanças por esse mundo e que fui tão feliz. Um belo relato, recheado de humanidades e cumplicidades. O mesmo se passa por cá, quando me deparo com algum luso, fortuitamente.

    Beijos e obrigada por essa emoção de agora!

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  7. Amig@s: qualquer dia volto a responder aos comentários como era meu hábito. Mas, nesta postagem, achei que devia deixar aqui uma nota, além do meu obg pela vossa presença e carinho.
    Ao longo da minha vida pessoal e profissional, acontecia (ou fazia acontecer, sei lá) vivenciar muitas peripécias assaz enriquecedoras, não só em Portugal, mas também nalguns lugares que visitei.. Muitas delas, andam aí pelo blogue...
    Canto da Boca: confesso que tenho sempre curiosidade em saber o lugar que habitam as pessoas que comento. De ti, fico sempre confusa, mas agora já sei que, pelo menos, és uma cidadã do mundo :)
    Fico contente por teres gostado de saber do Porto. Vou deixar um link onde está uma "crónica" também sobre a Invicta ( http://portate-mal.blogspot.pt/2011/08/recortes-de-uma-cidade.html#comment-form ) , cidade que o meu filho escolheu para viver, desde há algum tempo.
    E fico-me por aqui...Gosto de escrever relatos de lugares/pessoas, pois uns não são nada sem as outras.
    BJOS, amiga :)

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    1. A cidade em que moro se chama Olinda - PE., no nordeste do Brasil (daí o email, entre outras razões), mas já morei no Porto, daí a minha ligação com a cidade. Além, claro de também apreciar a cultura de outros povos, mundos...

      Um beijão!

      ;))

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  8. Eu e minha familia visitamos Portugal com certa frequência, principalmente porque é o ponto de chegada e de partida para quem viaja pela TAP.

    Temos uma afeição enorme pelo país, embora já tenhamos sido vítimas de um furto realizado por gatunos que entraram em nosso quarto, no hotel, e nos levaram todos os equipamentos eletrônicos e os cartões que continham belas fotografias de nossa viagem pela Floresta Negra, na Alemanha.

    Sempre admiramos a educação e a fineza dos portugueses e achamos divertido porque eles sempre falam no diminutivo. Um pedacinho, um bocadinho, um beijinho... :)

    No Porto estivemos apenas uma vez e, em um passeio na margem do rio, no lado de Gaia, encontramos uma família (casal e duas filhas) cuja simpatia e meiguice são difíceis de encontrar nos dias atuais.

    Trocamos ideias. Eles nos falaram de seus planos e dos projetos para as filhas, que tinham interesse em música erudita. Conversávamos como se fôssemos amigos de longas datas. No final, nos fotografamos reciprocamente e nos despedimos, ficando com aquela sensação do surpresa em encontrar pessoas que ainda sentem prazer em se comunicar alegremente com outros seres humanos.

    Guardamos a imagem do Porto com carinho, principalmente por esse encontro casual, essa troca de carinho e amizade tão rara hoje em dia.

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  9. Cida Vasconcellos27 fevereiro, 2014

    Adorei a tua crônica, Odete :)
    Sabe...tenho a maior vontade de conhecer o Porto, e até me senti lá ao te ler. E como "será" bom eu encontrar uma pessoa assim como você, com essa vontade de saber, de aprender, de conversar.
    Aqui em Guarulhos, ou mesmo São Paulo, era difícil encontrar um português jovem, mas cheguei a conhecer uns portugueses de mais idade, aqueles que vieram para cá nos anos 60 ou 70, e quando eu tinha oportunidade eu logo perguntava algo sobre Portugal :)
    Hoje em dia, com essa emigração dos portugueses, tenho ouvido alguns sotaques e logo já fico de orelhas em pé... heheh... como noutro dia, que ao andar pelo shopping, ouvi um sotaque português atrás de mim, e vinham três rapazes conversando... ahhh que vontade de entrar na conversa, só não o fiz porque não teve como... rs...
    Entendo perfeitamente o que você sentiu ao encontrar essa família brasileira aí em Portugal :)
    Um beijinho prá você

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