sexta-feira, 21 de março de 2014

Memorial I


Partiste há muito. Podia perfeitamente precisar no friso cronológico do tempo. Mas não quero. Não é o tempo decorrido que me leva a iniciar o memorial granítico de memórias do teu e meu tempo. Era preciso um começo. Terminará quando a memória se ausentar de mim. É ela a culpada dos sentimentos. É ainda ela que me leva a sorrir-te, a contemplar o teu rosto, a ver-te andar, a ver-te chegar e partir, a reparar na habilidade manual da tua arte-trabalho, a afagar a roupa que usavas, a sentir o prazer do gesto de cuidar dos teus pés mergulhados na água quente em noites frias…
E tudo se mistura. A filha criança, menina, jovem, mulher, mãe. Ainda tiveste tempo para sentires a ternura de teres um neto nos teus braços e de passarmos um natal sem ausências físicas.
Acontece precoce, a partida na tua família. Foi a avó Cândida, o avô Alcino, a tia Virgínia, a tia Margarida – ainda presente na sua ausência mental – e, sabes, recentemente, o tio Zé. Por isso é que o tempo dos meus continua a estar no meu sentir tempo. Como se fora património edificado. E cuido dele porque, nos seus traços, estão os teus e vossos traços, carateres esculpidos nas pedras lascadas que herdei.

A voz erguida quando precisa.
O ato solidário do dia a dia.
A honestidade como guia…

Vês, pai, foi tão fácil iniciar a construção deste Memorial! Até breve…

(Deus te abençoe, minha filha – ainda consegui ouvir antes de pousar a caneta.)

OF (Odete Ferreira) – 19-03-2014

Adenda  em 26 -03-14
Amig@s: tenho estado bastante ocupada, daí não vos ter visitado nos vossos blogues, ultimamente. Em breve retomarei as visitas....

13 comentários:

  1. Olá! Quantos valores no seio familiar que deixamos pelo medo de não enxergar! Lindo texto, de fazer acordar! abraços

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  2. Presumo que essa memória certamente nunca se ausentará, trazendo sempre essas recordações de tanta saudade, envolvida em turbilhão de sentimentos misturados de passado e presente.
    Gostei muito dessa alusão ao tempo dos que por nós passam, como "património edificado". E no fim, quase me veio uma lagriminha....:-) Eu que sou orfã de pai vivo.
    Um belíssimo e terno memorial este, de uma filha que nunca "perderá" o pai.
    Obrigada, Odete. Gostei muito.
    xx

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  3. Sentida e bonita homenagem.
    um gde bji

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  4. Certas memórias - as cruciais - querem-se cuidadas, irrigadas de ternura, legado para as próximas gerações...
    Um belo texto, tecido em profundo sentir!

    Beijo :)

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  5. OI ODETE!
    PARA QUEM JÁ VIU SEU PAI PARTIR NESTE TREM SEM VOLTA DA VIDA, LER TEU TEXTO É ENCHER O CORAÇÃO DE CARINHO, MAS, A LÁGRIMA QUE VEIO, FOI DE AMOR E DE MUITA SAUDADES.
    LINDO DEMAIS.
    ABRÇS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

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  6. Uma presença (teu pai) contigo,na memória inscrita do amor, admiração e

    proteção... Na beleza da tua escrita que evoca o sentir,o mais sublime,

    aquela emoção cristalizada na lágrima. Deixo o teu espaço com as minhas

    lágrimas...

    Muito belo,tocante e sublime,querida Odete!

    Beijinho e um abraço de paz que envolva a tua alma...

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  7. Do verso que parte o verso fissurado

    "Partiste há muito. Podia perfeitamente precisar no friso cronológico do tempo. Mas não quero. Não é o tempo decorrido que me leva a iniciar o memorial granítico de memórias do teu e meu tempo. Era preciso um começo. Terminará quando a memória se ausentar de mim."

    Todos os recomeços são solitários
    Mas a memória nunca está só

    Bjo amigo

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  8. Este teu memorial é de uma beleza ímpar, não só pela homenagem que prestas publicamente ao teu pai, mas também pela riqueza linguística que a tua narrativa contém.
    Odete, tem uma boa semana.
    Beijo.

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  9. Em cada pousar de caneta, em cada gesto, em cada respiração.
    Lindíssimo, comovente. Deixa um aperto no peito.

    Beijo,

    ASA

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  10. Aquela frase, entre parêntesis, tocou-me demais! A memória, que mantém vivos os sentimentos, mistura tudo e edifica um tempo, um tempo que, na tua palavra, nos embacia o olhar.
    Já conhecia o texto, mas reli-o com prazer.
    Beijinho, querida amiga Odete.

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  11. O tempo não importa pra aquele que perde.. se foi há 1 ou 10 anos pouco muda já que a dor não é divida pelos anos... talvez acumulada. Bela homenagem! Que bom que o que resta- as memórias- nos confortam de algum modo.

    beijos!

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  12. Que a memória não se ausente, ainda que nos faça chorar. Abraço.

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