Ainda te vejo sentada à lareira na
casa térrea onde tudo estava ao alcance da mão. O louceiro, a pia, a arca do
pão. Defronte da casa, tendo o calor do sol nos dedos, treinava a caligrafia
nas cópias encomendadas pela professora. Uma cadeira servia de secretária; um
banco de madeira, à medida da minha pequenez, amaciava as horas que ali passava.
Desenhava as letras a tinta permanente. Ainda hoje me escapa a razão desta
paixão. Talvez porque realçasse a cor preta das letras no papel, embrumando-me
os olhos, agitando um sentir que, penso, saía da alma. Sempre tive mundos que
gizava e me bastavam. Criava-os e recriava-os. E tu foste a principal causa desta
efervescência. Alimentavas-me o espírito. Eras espírito num corpo avantajado,
já um pouco encurvado, orlando a floresta do fogo crepitante. Quem sabe se não
havias já dançado num ritual de espiritualidade em outra vida? Eras tão crente
e seguidora de rituais ancestrais! Todos os anos, na semana santa, me avivavas
a memória, com casos acontecidos quando não se respeitavam. Como aquele de se
ver a cara de Cristo no lençol do estendal porque fora lavado na quinta-feira à
tarde. Durante anos, respeitei escrupulosamente o tempo pascal. Se o não
fizesse, sentia que estava a trair a tua memória.
(...)
Odete Ferreira
(Uma breve passagem da narrativa "Na memória de ti", publicada na Coletânea "A Despedida" da Editora Papel d´Arroz" -2015)
Por esta altura, a avó paterna vive comigo estes dias. Desde os meus dezasseis anos.
Todos temos lembranças, mas colocá-las em palavras, com beleza, nem todos conseguimos. Os que nos alimentam os espírito ficam conosco para sempre. Meus pais eram muito católicos e o respeito que alimentavam por essa época nos levava a seguir idêntico caminho. Na sexta-feira, nada se podia fazer.
ResponderEliminarMemórias... sempre ricas. Linda narrativa, Odete!
Desejo-lhe uma iluminada Páscoa. Bjs.
Uma ternura de partilha
ResponderEliminarBjs
Amei ler este belíssimo texto, sentir
ResponderEliminaras palavras dançando em mim, trazendo
todo o sentido sublime da tua unidade afetiva
com a tua avó e compreendendo profundamente
este teu sentir, as nossas avós, pontes
eternas do amor sublime, querida amiga!...
Feliz Páscoa no simbolismo da renovação!
Beijo e abraço de irmandade de alma poética...rss
Um texto comovente sobre a tua avó paterna.
ResponderEliminarOs espíritos grandiosos alimentaram e continuam a alimentar o nosso espírito, viverão sempre na memória que nos habita, e os ensinamentos são respeitados, tantas vezes inconscientemente, para não permitir esse sentimento de "traição" à memória que deles temos.
Prosa de excelência.
Páscoa Feliz, Odete.
xx
É tão bom ter recordações felizes!
ResponderEliminarMuitos as têm. Eu tenho. Mas passá-las para o "papel" com esta leveza, tanta poesia envolvente num mar de ternura... isso é que já não é para todos.
Claro que tu escreves divinalmente. Tu sabe-lo e eu sei-o. E aqui prova-lo uma vez mais.
Obrigada pela tua presença no meu cantito e pelas tuas palavras.
Essa do "ler o conto aos alunos" é 5*!!! Beijo especial por isso.
Aproveito para desejar uma doce e feliz Páscoa.
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS
As avós, de enorme e abrangente manto protector, com uma visão do mundo ao ritmo das estações, onde cada coisa tinha o seu lugar. Um mundo em desuso, mas de raízes profundas...
ResponderEliminarMemórias aconchegantes, Odete, aqui tão bem descritas e sentidas.
Um beijinho e... uma Feliz Páscoa!
Um texto maravilhoso, com recordações cheias de ternura. Li e reli.É fantástica a tua forma de escrever.
ResponderEliminarUm beijo.
O Baú das recordações é a pérola de toda uma vida. Cada "bocadinho" é um episódio de de um todo que não tem fim.
ResponderEliminarÉ maravilhosos podermos recuar no tempo e "ver-mos", com a nitidez da memória pormenores que nos comovem a Alma.
Uma partilha daquelas que só uma Alma bela pode conceder.
Parabéns, Odete.
Beijo
SOL
~~~
ResponderEliminarQuanta ternura, carinho profundo, íntima cumplicidade
e poesia impregnam este delicioso texto de memórias!
Quando crescemos chegam as dúvidas, fica o imenso amor...
Que maravilha ainda poderes mimar a tua queridíssima avó!
~ Continuação de dias felizes para a tua família.
~~~ Grande abraço, querida amiga.~~~
Ps ~ Indica-me como posso comprar o livro.
Querida amiga, só hoje, ao ler um comentário no 'blog'
Eliminardo Carlos Ramos, soube que a tua muito amada avó, partiu quando tinhas 15 anos.
Perdoa a minha falta de perspicácia.
Beijinhos.
Ah as avós... que delícia de memórias Odete! Aliás, penso que as lembranças de nossas avós são sempre assim...pura ternura.
ResponderEliminarBeijuuss
Boa tarde, boas recordações que permanecem para sempre, as avós conselheiras e protectoras com o coração enorme de amor, são maravilhosas.
ResponderEliminarAG
Este excelente excerto mostra uma coisa evidente: a tua narrativa tem fôlego para o romance.
ResponderEliminarUm bom fim de semana, querida amiga Odete.
Beijo.
Excelente este trecho. Adorei ler.
ResponderEliminarUm abraço
O que dizer a não ser que escreves muito bem?
ResponderEliminarCom riqueza de detalhes falas da figura da avó, seus ensinamentos e gostos.
A fé foi passada para você com toda certeza e consegues mostrar isso lindamente por aqui.
Você é uma escritora que não se define.
Parabéns!
Beijos na alma.
Odete,
ResponderEliminarsão memórias que enchem o coração e que toldam a voz, pela emoção que trazem.
Tão bom ter quem nos alimente o espírito.
São vivências que trazem o cheiro das frésias.
Muito bonito.
;)
um bjn amg