sábado, 2 de novembro de 2013

Sei que me ouves, tio Zé

Sei que me ouves, tio Zé. E não podia ser de outra maneira e se as lembranças não estivessem tão materializadas na minha identidade memorial, não te escreveria…
A tua casa, a casa multifacetada da minha infância, os espaços onde tantos objetos eram já míticos, altares do meu olhar infantil, possuídos do sentido espiritual de ti, do avô Alcino, da avó Cândida, eram já pertença do meu ser menina, como se um lado esotérico me aureolasse…
Na pequenez dos meus seis, sete anos já sabia que um dia habitariam no meu espaço. E habitam! Estão vivos numa divindade de cada um de vós. Há crenças que não se questionam. Sentem-se. Não se explicam. Tal como a natural curiosidade que a avó Cândida, sabiamente, me inculcava com os seus relatos de rituais que continuava a cumprir. Ficava numa espécie de limbo. Saía do tempo real, o eco das suas palavras pousavam-me delicadamente em outros tempos, em outros lugares, envoltos em brumas de mistério…
Na minha juventude, permanecia horas – orelhas  arrebitadas, cotovelos afivelados – a seu lado, fazendo companhia a um corpo inerte, acamado e a uma memória prodigiosa, arrastando-me nos seus fantásticos contos das mil e uma noites. E tanto me viciava como me saciava o voraz apetite pelo misterioso. De tal forma se inculcou que fez parceria na minha relação com a vida e no paulatino questionamento do seu sentido. Queria respostas…
A voracidade de leituras, a atração pelos relatos de fenómenos ditos paranormais, foram centralidade num processo de dialética… Hoje, no distanciamento de décadas, sei que o espírito de cada um de vós, traduzido na atitude e nos atos, nunca foi uma obrigação. Foi devoção. Foi doação. E tu, tio Zé, foste o exemplo mais completo que vivificará no imaginário de cada uma das pessoas a quem te deste. E eu sou uma fidedigna testemunha. E a tua chama olímpica estará em mim, simples estafeta de um caminho que desbravo no interior de mim...
Até já, tio Zé.
OF, 30-10-2013
Foto – Autor desconhecido

(Nas minhas memórias, um momento de memória do Tio Zé, falecido a 27 de outubro, por atropelamento brutal...)

4 comentários:

  1. Lindo e comovente...

    Sabes, temos muitas coisas em comum, A tua avó e a linda história com

    ela é semelhante a minha...

    Odete tens uma alma linda, cheia de sentimentos sublimes!!

    Beijinho.

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  2. Sinto muito Odete...que brutalidade. Linda homenagem, de uma sensibilidade única!
    Beijuuss na sua alma

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  3. Excelente homenagem....
    Um abraço solidário....

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  4. as palavras são quase sempre insuficientes

    "E não podia ser de outra maneira e se as lembranças não estivessem tão materializadas na minha identidade memorial, não te escreveria…"


    mas perduram além do tempo

    "Há crenças que não se questionam. Sentem-se. "


    Bjo. amigo

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