domingo, 11 de maio de 2014

Um outro que não me é indiferente


Reparo nela: mulher madura, passo firme, vestido sedutor, preto, em decote pregueado… Certamente de bem com a sua aparência, não regateando um olhar atento à silhueta que se espelhava nas montras das lojas rentes ao passeio revestido destes pavimentos industrializados, globalizados que dispensam os mestres calceteiros. Sisuda, neste dia entrecortado de um sol pálido e uma chuva que decidiu achuveirar as copas dos verdes que quase tocam este céu anilado.
Observador atento, sei exatamente para onde se dirige, o tempo que demorará, o que escrevinhará no seu bloquinho preto. Leio-a, sobretudo o olhar: intenso mas desconcertante. Se na minha mente desenho a previsibilidade de alguns gestos, o olhar que comigo conversa nesse encontro de leitura (sim, sei que conversa comigo e com todas as pessoas que a descubram nos seus escritos), provoca-me arrepios. Este ser misterioso adivinha-me os pensamentos, atinge-me a alma! Será algo de sobrenatural?
Levanto-me, desentorpeço o corpo. Releio. Já mais racional, mastigo a palavra, o seu conjunto, as frases e, quando me sinto, estou a conversar com a mancha do texto no écran, a sentir a sua presença… Relativizo-me na dimensão deste universo de palavras. Até as normais dúvidas existenciais tomam outro rumo. Basta alargar a semântica lexical…
Raio! Que poder! Acabo por inventar uma profissão: cinzelador vocabular… Hum! Um dia besunto-me de coragem e falo-lhe. Acho que vai gostar de saber desta ideia…

Odete Ferreira
Foto - autor desconhecido

18 comentários:

  1. Gostei deste teu texto. Tantas vezes me acontece apaixonar pelas personagens que vou criando nos meus livros, moldando-lhes as reações, os sentimentos - dando-lhes vida - interagir com elas por largo tempo, vendo-as perfeitamente no meu imaginário,acompanhando-me e convivendo comigo com a intensidade de grandes amizades.
    Gostei imenso de ler-te
    Um abraço

    ResponderEliminar
  2. Esculpir personalidades e entender a escultura com brilhantismo.
    Leve e tranquilo. Bom.
    Beijo. D

    ResponderEliminar
  3. :)
    Gostei muito da ideia, Odete. Quem não gostaria de dar vida a uma tela?
    (As palavras são suas cúmplices)

    Beijo :)

    ResponderEliminar
  4. Uma ideia muito original e muito bem passada para o papel!
    Um texto excelente sobre a leitura, a tenção que damos às personagens, e o fascínio que sobre nós exercem. Já a todos nos aconteceu guardá-las dentro de nós por muito tempo. A realidade da escrita a ser absorvida pelo leitor.
    Gostei muito, Odete!
    xx

    ResponderEliminar
  5. Uma bela viagem
    com palavras em relevo

    ResponderEliminar
  6. Boa noite, Odete. Vi o seu comentário no poema da Rosa no blog "O Refúgio Das Origens", achei interessante e resolvi conhecer o seu espaço.
    Gostei muito, tanto que estou seguindo.
    Participo de lá também, e é sempre uma honra podermos estar em irmandade com poetas excelentes.
    Volto outra hora para comentar, preciso descansar.
    Tudo de bom e excelente semana de paz!
    Beijos na alma!

    http://redescobrindoaalma.blogspot.com.br/ (blog pessoal)

    http://carinhosemselosdosamigos.blogspot.com.br/ (blog pessoal)

    http://refugio-origens.blogspot.com.br/(blog onde escrevo todos os dias 09 e 23 de cada mês).

    Fique com Deus!

    ResponderEliminar
  7. diria multidimensional esse texto, muito rico em imagens e sensações...

    ResponderEliminar
  8. Gostei tanto do discurso do narrador dos pensamentos fluidos.

    Uma história e tanto.

    A aguardar mais...

    Beijinhos

    ResponderEliminar
  9. Olá! Que grande talento esse de aderir a mancha na folha, tornando-se uma grande poesia que tocas as partes mais profundas! abração

    ResponderEliminar
  10. Não vamos ficar por aqui só, pois não?

    Espero mais !

    Um grande abraço, querida Odete, :)

    ResponderEliminar
  11. Oi, Odete!!
    Está pronto, deu-lhe vida e agora é hora de dar-lhe uma história!
    Beijus,

    ResponderEliminar
  12. Maravilhoso o título que já remete a interação do leitor com o texto. Todo

    bom leitor e escritor (leitor) compartilha o sentir, a narrativa e a

    realidade imaginada, até antecipar a vivência (interior) com a

    vivência textual, promovendo uma experiência mágica (sobrenatural)...

    Gostei imenso e aguardo mais,amiga!

    Bjo,querida.

    ResponderEliminar
  13. OI ODETE!
    O FASCÍNIO QUE UM PERSONAGEM BEM DELINEADO PODE EXERCER NO LEITOR.
    MUITO LEGAL TEU TEXTO.
    ABRÇS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

    ResponderEliminar
  14. Alguns personagens nos encantam de tal maneira que visualizamos seus gestos e até ouvimos suas palavras. E antes que algo façam, ousamos prever seus caminhos.
    Que bela abordagem você fez! Bjs.

    ResponderEliminar
  15. Uma excelente metáfora. Como nos pode tocar a imagem. Que real se torna a visão de quem queremos.
    bj

    ResponderEliminar
  16. Na verdade, há imensas coisas à nossa volta que nos fascinam. Sejam mulheres de preto ou mulheres cinzeladoras de palavras (prefiro estas...). Mas nem sempre nos besuntamos de coragem para as tocar, talvez com o medo de que o nosso gesto seja entendido como irrelevante. No texto, o escritor era eu e a mulher de preto eras tu. Assim, dei-lhe a minha interpretação, mesmo correndo o risco de ser entendida como irrelevante... é a vida...
    Foste mais uma vez excelente. Tu não existes, tal é o talento que as tuas palavras revelam...
    Tem um bom fim de semana, querida amiga Odete.
    Beijo.
    Beijo.

    ResponderEliminar
  17. Amig@s: foi de bom grado que li os vossos comentários. Sorri bastante também. Gosto imenso de escrever em prosa, percorrendo vários géneros (reflexão, partilha de sentires, cenas do quotidiano, esquissos de guião...) mas não passam de textos esparsos. Por vezes, respondo a desafios e participo em Antologias com curtas histórias. Nem sei se seria capaz de escrever um "romance"! Vou divulgando alguma coisa do que escrevo, sem haver ordem cronológica, excetuando os textos (prosa ou verso) que estejam ligados a uma data/época específica, pois só assim se torna pertinente a partilha.
    Um beijo :)

    ResponderEliminar
  18. Reparo, demoradamente, neste texto. Espreito o bloquinho preto e encontro esse olhar que provoca arrepios. O arrepio de quem escreve e se vê ao espelho com imenso prazer.
    Excelente, querida amiga!
    Bjuzz. :)

    ResponderEliminar