segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Respingos quotidianos


Obra de Brad Kunkle

- Sinto-me tolamente apaixonada!
Devolveu-me um olhar indiferente. Soou-me a trocista.
- Não dizes nada?
- Isso  é um banal pleonasmo. Estou habituada a tiradas tuas mais originais. Estares ou sentires-te apaixonada  é, de per si, um estado atoleimado. Sabes, aquele olhar de nuvem azul, aquela atitude do peace and love, aquela levitação transcendente própria de um retiro meditativo…
- Sentir apenas, ignorar egoisticamente, todo e qualquer incómodo social… - interrompeu-se antes que alguma coisa lhe retirasse um estado que queria prolongar. Tinha direito. Como quando se concedia ao luxo de uma massagem. Descomprimia e tentava convencer-se que a doutrina era essa mesma. Um mundo cada vez mais desigual, mais injusto, mais cruel.
Raios! Abraçar a humanidade era seguramente o estado mais puro da paixão! Autorizar-se uns dias de férias. Parecia-lhe a solução. Espetou o olhar na sua amiga, surpreendida pela ausência de uma simples interjeição.
- Genial esta solução, não te parece?
- Qual? Esqueces que és compulsivamente preocupada com o outro?
- Ah! Não és adivinha, claro! Pensei que tinha pensado alto…
Não… Conceder-me umas férias, desligar do lixo tóxico e das lixeiras a céu aberto onde os mais vulneráveis forçosamente focinham. Não é raro pensar nas mães que deram à luz seres amados e assistir à execrabilidade dos esquemas que engendram…
- Olá  mãe, sim, já sabia, mais uma. Estes filhos da mãe parecem uma nascente que não seca, nem no verão!
Terminados os mimos entre mãe e filha, lá lhe respondeu:
- De facto, é uma boa ideia! Autorizo-te a estares tolamente apaixonada e eu vou empanturrar-me com o sabor daquele gajo que vi passar… Por favor, traga-me um igual, pediu, sorridente, à menina que servia a esplanada.
E desatamos numa gargalhada única, doseada com alguns termos do nosso vernáculo português.
Deixei-a lambuzar-se com o tal gajo. Eu preferia saborear o meu estado de graça e preservar a minha cinturinha de vespa…

Odete Ferreira  – 26-07-2014 

22 comentários:

  1. Ah, Odete, que bonito, e surpreendente.
    Um texto que tem de ser lido nas entrelinhas; ao mesmo tempo sério e com sentido de humor. E é o humor que tantas vezes nos salva da dor, para que nos desliguemos "das lixeiras a céu aberto" e nos "lambuzemos" com um qualquer gajo que passe, para que evitemos pensar no horror que certas mães estão a sentir. Nenhuma mãe traz um filho ao mundo para vê-lo ser apologista da morte; a dele e a dos outros.
    O Humor é uma arma suave e inteligente, feita de criatividade, e que tantos querem assassinar.
    Um texto muito inteligente. Gostei muito.
    xx

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    1. Querida Laura. Dato sempre o que escrevo - assim como o local e a hora; gosto de associar o escrito ao momento, dando-me a impressão de estar a escrever a minha história "literária" :)
      Este foi escrito em 27-07; mas podia ter sido há apenas uns dias... Sempre grata pelos teus comentários inteligentes... Bjinho :)

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    2. Ah que parva que sou, é que eu nem reparei na data!...:-)) Talvez influenciada pelos últimos acontecimentos, decidi lá ver isso, e na verdade, consigo lá ver os últimos acontecimentos....O leitor tem sempre razão. ;-)
      Obrigada pela resposta, Odete.
      xx

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  2. cada momento de nossas vidas merecia um escrito. Olá minha querida querida Odete passando para te abraçar e te convidar para o começo das festividades pelos 5 anos de Renascimento da Ilha e já antecipo que vamos novamente ter a brincadeira do Top Blogueiro e outra surpresinha :-) topas brincar? Um enorme beijo no coração e não vamos deixar a blogosfera fenecer.

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  3. Humor é sinónimo de inteligência: o teu texto tem as duas coisas e agradou-me muito.

    Beijinhos, linda

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  4. Respingos quotidianos luminosos, repletos de humor, rico
    do olhar feminino que divaga nas ondas do pensamento.
    Nos proporciona uma narrativa convidativa para transcender
    a realidade tão impositora a migalhar a espontaneidade e
    a alegria dos gestos sublimes do Ser-viver em plenitude...

    Adoro ler-te,amiga!!
    A imagem é lindíssima...
    Bjos e vou com aquele sorriso depois desta leitura...

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  5. Diálogo saboroso, repleto de insinuações humorísticas e de boa disposição.



    Beijos



    SOL

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  6. Um texto delicioso e bem humorado, desde o "Sinto-me totalmente apaixonada" à "cinturinha de vespa".
    Brilhante, como sempre.
    Bom resto de semana, querida amiga Odete.
    Beijo.

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  7. Olá Odete,
    Vamos lá manter a cinturinha...

    bj amg

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  8. Great blog ! Do you want to follow each other ?
    http://kasjaa.blogspot.com/

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  9. A tua escrita são palavras que não secam. Fazes-me recordar aquela garota que vi na estação a fazer-me adeus enquanto o meu comboio partia. Não esqueci nunca aquele gesto.
    Bj

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  10. Perfeito, cada palavra a seguir à outra mais cativa, texto é maravilho como a "cinturinha de vespa."
    AG

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  11. Olá Odete, cinturinha de vespa!
    Muito boa essa combinação de olhar de nuvem azul com atitude de paz e amor. Não precisas de permissão para se apaixonar!
    Quem está apaixonado pelos seus devaneios, é esse gajo aqui, ora pois...pois!
    Beijos!

    VitorNani/Hang Gliding Paradise

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  12. Odete , gosto muito da sua escrita e já lhe disse algumas vezes . Este texto me fez lembrar conversas com minha filha . Leveza e humor nas entrelinhas . Obrigada pela partilha . Beijos

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  13. Gostei do respingar do teu post :)

    Beijos !

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  14. Um diálogo cheio de humor. Um texto que se lê e relê nas entrelinhas...
    Gostei imenso.
    Um beijo.

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  15. Odete,
    A cumplicidade é coisa preciosa.
    Excelente texto!

    Um beijo :)

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  16. Boa semana com saúde e cintura de vespa.
    Bj

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  17. Puck... nem sei porque me lembrei de Puck , aquele travesso atazanador de consciências em debate, Adorei. Beijinho

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  18. .

    Voltei para deixar um abraço
    e levar outro comigo.

    Beijos,










    .

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    1. Um texto delicioso, Odete! Lambuzei o olhar palavra a palavra, momento a momento. Um encontro de verdadeiras amigas. Um encontro que, às vezes, é preciso.
      Beijinho, querida amiga.

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  19. Uma nota: apesar do texto ter sido escrito em 26-07-14, foi intencional a sua divulgação no blogue por esta altura. Muitas coisas não são, de facto, por acaso.
    Já se dizia de Gil Vicente "Ridendo castigat mores"; assim, numa conversa para o banal, despreocupada, há consciências que de banal não têm nada; até no humor...
    Ah, a cinturinha de vespa, parece que está bem e recomenda-se!
    Grata a tod@s @s que por aqui deixaram a sua marca.
    Meu bjo :)

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