sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Pequenez da palavra

 Obra de Christian Schloe

Equaciono, frequentemente, a capacidade de transmitir sentimentos pelo signo linguístico. E discorro. O verbo sentir exige, pela sua natureza, algo que o complemente visando que o outro apreenda a mensagem. Portanto, ainda que se entenda a definição aposta no dicionário, os sentimentos são pertença da alma poética. Logo, com toda a propriedade, pode afirmar-se: há sempre um poeta em cada um de nós. E quem duvidar é porque a esse ser humano lhe falta agudeza de espírito.
Quando, em qualquer circunstância da minha vida, sobretudo na condição de professora, tentava que os meus aprendentes percebessem o alcance da afirmação, notava-lhes uma surpresa que os emudecia. Ficavam a matutar, a medir o pulso do seu próprio entendimento. Sem dar muita margem à reação, prosseguia nas minhas elucubrações. Escrever vem depois e a idade com que se começa a exteriorizar, usando o signo linguístico, não é relevante. Importante é viver em poesia. E todos podemos ser mágicos. E todos podemos viver a magia dos contos de fada…
Tanto arrazoado quando, afinal, talvez queira apenas convencer-me que, é possível definir sentimentos. Para nós, para o nosso dicionário interior, onde o sentir é um todo indivisível, apenas fatiado para matar a fome dos afetos…
É nesta linha que situo a paz que me atravessa por inteiro. E, só assim, tem sentido

que desejemos ao outro, antes de tudo o mais, PAZ…

Odete Ferreira – 08-05-16 

Pequenez da Palavra II

E esta paz pode exponenciar-se. Até que os sentimentos se fundam sem causa nem efeito. Em pó de arroz para salientar as maçãs do rosto. Em água de cheiro para aspergir o colo cansado. Em sorrisos de alma apenas visíveis no brilho do olhar. No riso cristalino do filho a situá-lo menino. Nas sementes que hão de germinar e rejuvenescer o tempo, saudando-o a cada solstício com rituais de batismo…
Por isso:
Há um sentir maior que o verso,
maior que as horas do tempo,
maior que as turbulências do momento,
um tempo vivente no vento que me chega disperso.

Iço as velas; não importa o rumo, apenas navegar à vista…

Odete Ferreira, 31-07-16

12 comentários:

  1. Olá, minha querida Odete.
    Adoro estas tuas análises, tão tuas, onde se conjugam a sensibilidade extrema e a técnica adquirida pela professora, que, a esta altura da vida, pela experiência alargada no tempo, já está enraizada na tua pessoa, fazendo parte da essência, como se tivesse nascido contigo: impossível dissociar.
    "...matar a fome dos afetos..." - é-me impossível passar adiante sem falar no quanto que me inquieta saber de algo inteiramente acessível a qualquer criatura, sem necessidade de pagamento de dízimos a quem quer que seja... tornar-se matéria tão cara e escassa. Tantos a morrer à fome de afectos...
    Mas, apesar de tudo e, como tão bem dizes, "há sempre um poeta em cada um de nós" - mesmo que haja os que não acreditam e que ainda não encontraram o seu ;)
    E, talvez seja essa capacidade de ser poeta, ainda que sem pena, que permite a sobrevivência quando a vida é caos. É no olhar de poeta, que descobre as asas da borboleta a nascerem dos escombros, ou o azul a surgir por detrás da nuvem cinzenta... que reside a força que o agarra à vida e o faz acreditar que a paz é possível, mesmo em tempo de guerra - porque "há um sentir... maior que as turbulências do momento" - lindo, Odete. Lindo.

    Um beijo amigo

    ResponderEliminar
  2. *Esqueci de lhe dizer que gosto do novo rosto do blogue =)
    De vez em quando, faz bem mudar o "look".
    bjn

    ResponderEliminar
  3. excelente texto. que para além do "lastro" intelectual da autora, revela também grande sabedoria (sagesse)

    Tem razão ao considerar que a realização da pulsão emocional ("alma poética" no dizer expressivo da autora e eu diria "pulsão erótica" não fosse o erotismo andar pelas ruas da amargura) é fundamento de apaziguamento da alma. permito-me porém referir que as emoções são muito vulneráveis e frágeis (ainda que podendo ser fortes) e que para serem (as emoções) plenamente gratificantes terão que ser "fecundadas" pelo exercício da inteligência, sem o que serão "fogo de palha" ou, mais grave, a "alma poética" poderá ser capturada e sujeita a desígnios "exteriores" ao seu natural pulsar. por exemplo, qualquer crítica mal intencionado, pode destruir uma alma poética talentosa, porém "ingénua".

    peço desculpa por ter-me alongado, mas o tema merece.
    grato.

    beijo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. ("fecundadas"... Hummm... Cimbalos a reluzir...)

      Eliminar
  4. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  5. Muito apreciei a tua dissertação sobre significado, significante e significação
    dos signos linguísticos referentes aos sentimentos, nos sentidos denotativo e conotativo.
    Este sentido, a conotação dos signos linguísticos é absolutamente indispensável
    à linguagem poética.
    Estas meditações são fundamentais aos escritores, mas principalmente aos poetas
    que devem pretender que as suas criações sejam entendidas pelos seus leitores.
    É importante saber passar o 'sentir maior do que o verso', ainda que seja, nas entrelinhas...
    Desejo-te uma paz profunda nesse abandono de homenagear e louvar a vida.
    Dias perfeitos e harmoniosos.
    ~~~ Beijinhos, Odete ~~~

    ResponderEliminar
  6. Uma reflexão muito interessante sobre o acto de escrever. No geral estou de acordo. Sei que talvez os poetas sintam o chamamento das palavras. E por isso sabem que "Há um sentir maior que o verso"...
    Um beijo, amiga.

    ResponderEliminar
  7. Excelente texto

    Poetas somos todos
    alguns ousam escrever

    Bjs

    ResponderEliminar
  8. Gostei do teu dizer e fazer despertar.


    Poetas, somos a gente
    Que escreve o que bem quer.
    Mas, vero, só o que sente
    Sensibilizadamente,
    O que um Poema requer.



    Beijo
    SOL

    ResponderEliminar
  9. Querida Odete,

    Fiquei encantada com estes teus textos e aguardo continuidade,
    textos excelentes e tão humanos registros e acompanham uma
    imagem belíssima e apropriada.

    No primeiro texto, acrescento que eu conheço pessoas
    mais poetas na maneira de sentir e viver do que muitos
    poetas que escrevem.
    Imagino tu na atuação como professora, o quanto
    contribuísse para seres humanos melhores.

    No segundo texto, a evidência aprofundada do relato
    do primeiro texto, sobre navegar a vida, sem a pretensão
    de ser dona de nada, tudo é para sentir, viver e
    guardar na memória afetiva...

    Quero expressar a importância da tua presença amiga
    (muitos anos e ainda bem..rss) no meu espaço e o
    valor de nossas partilhas na viagem das palavras
    repletas de sensibilidade, arte e humanidade.
    Tenho uma crônica minha que ainda não publiquei no
    meu blog sobre uma batalha com um professor (Doutor e
    excesso de importância...rss) no meu curso de Psicologia
    e quero quando publicar, a tua leitura e apreciação amiga.

    Bjos, Odete.

    ResponderEliminar
  10. Gostei desta tua reflexão sobre a escrita.

    Como sempre, revelas profundidade .

    Abraço grande

    ResponderEliminar
  11. Há muito que não leio nada seu, apercebi-me hoje e por acaso graças ao"desafio aceite", e fui ler o que encontrei e como sempre gostei... Acho que como diz uma amiga sua estou com necessidade de"matar a fome de afectos", e uma boa poesia ou um bom texto, ajudam sempre. Um beijinho e bom fim de semana

    ResponderEliminar