A morada
Ainda com
a indolência própria dos gestos preguiçosos de noites repousantes, abri as
janelas que dão para a parte do jardim mais arborizada. Um pouco antes, no
escasso tempo que os passos percorreram entre a copa e a cozinha, chegara-me,
nítido, o chilreio da passarada. Estava habituada a ouvi-lo, mas não desta
forma. Entre a curiosidade, a surpresa e a inquietude, saindo para o exterior,
desafiando a frescura da manhã enevoada, quedei-me, atónita, confesso, na
contemplação daquele quadro inusitado e inquietante. Os pássaros voavam de um
lado para o outro num alvoroço confrangedor. Compreendi os sinais como se fora
um deles.
Sem aviso prévio, haviam sido despejados da sua morada. E
exprimiam a sua dor. Numa revolta que não poderia reverter, nem tampouco
amaciar. Eu tivera tempo para me preparar para a mudança. A razão tivera tempo
de preparar a emoção da perda. Irreversível. Imperativa há muito, mas que fora
adiando. Afinal não havia sido responsável pela plantação de árvores de grande
porte no jardim. Confiei no saber fazer de jardineiros. Agora, avisada pelos
tempos de constantes enganos, já me precavo e negoceio as regras para o meu
território.
Passou-se no meu quintal, hoje. Quantos quintais do meu país a
sofrerem a desfaçatez da incompetência e da negligência! Quantos quintais a
precisarem de um planeamento holístico! Urgente evitar dores. Todos somos
Terra! Felizmente, há outras moradas por ali. E este pensamento aliviou-me, tal
como a notícia que ouvi, quase em simultâneo ao narrado, de medidas que vão ser
adotadas, preventivas da calamidade dos fogos. Coincidência? Não. Apenas necessidades
e urgências. Apenas os gritos da Terra a imporem-se, antes que, como escrevi no
poema Ardem-me os olhos :
Será a mãe nossa que pedirá algozes,
antes que todos os filhos nasçam estropiados.
Odete Ferreira - 27-10-16
Adenda em 28-10:
Hoje, apressei-me a abrir as janelas. O chilreio da passarada havia
retomado a sua cadência normal e o voo era apenas voo. Como bons vizinhos, as
moradas desocupadas acolheram novos inquilinos. Senti-me mais leve.
Fotos: Odete Ferreira
Um texto poeticamente emoldurando a natureza!
ResponderEliminarBelo de se ler e de se transportar à mesma!
Abraço.
Belo texto, Odete.
ResponderEliminarO homem dá cabo da natureza, sem se lembrar que ela é a sua casa e que precisa viver nela.
Um abraço e bom Domingo
Belo texto
ResponderEliminarQue não se vandalizem as memórias vivas
Portas abertas janelas escancaradas
ResponderEliminarbj
Não nos damos conta que fazemos parte da natureza, sem ela pereceremos. Ou mais, dependemos dela. O homem depreda tudo, até sua própria imagem - pra não deixar rastros bandidos?
ResponderEliminarBj - ótima semana!
"Todos somos Terra". Perfeito.
ResponderEliminarO impacto foi minimizado porque, segundo creio, não existem crias
ResponderEliminarnesta altura do ano, e os pássaros refazem rapidamente os seus ninhos.
Também ficaria preocupada com esse chilreio aflito...
Um texto muito interessante, revelando grande sensibilidade ecológica.
Um abraço do tamanho da Terra, querida amiga.
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Um respirar mais leve temperado na harmonia das coisas...
ResponderEliminarUm beijinho, Odete :)
Belíssima narrativa, como eu comungo deste teu sentir e
ResponderEliminarolhar, minha amiga.
Um encanto este teu texto com uma intervenção sobre este
mundo cada vez mais desmantelado e desprovido de consciência
e prática diante de que somos um só com a natureza e ela sendo
sempre generosa com esta humanidade feroz na ganância de tudo...
Bjos.
Um belo texto minha amiga e eu como amante de árvores fico sempre incomodado quando têm que abater alguma ou então quando fazem cortes nos ramos que são autênticos actos de barbaridade.
ResponderEliminarSaiu à pouco tempo um livro muito interessante de um Senhor austríaco Peter Wohlleben que é guarda florestal e que nos presenteia com uma verdadeira pérola literária "A Vida Secreta das Árvores".
Um abraço e bom fim-de-semana.
Cara Odete
ResponderEliminarFala aqui de um assunto que me afligiu e que me aflige sempre quando a Câmara aqui do burgo resolve podar as árvores. É um autêntico despejo da passarada que ali passa a noite e tive a desdita de um dia, à boca da noite, presenciar e ouvir os seus gritos desesperados, desorientados, como que chamando uns pelos outros, dizendo "vamos procurar outro sítio", como que famílias a juntarem-se, pais à procura dos filhos, enfim, de cortar o coração. A Terra com lugar para todos...seria o ideal e também de pura justiça.
Bom domingo.
Beijinhos
Olinda
Uma Natureza mais harmoniosa depende sempre de nós.
ResponderEliminarPensei que já te tinha comentado.
Uma boa semana.
Beijos.
"Felizmente, há outras moradas por ali." - dizes tu.
ResponderEliminarE eu pergunto: Até quando?
Confrange-me a alma ver derrubar uma árvore.
Se o grande predador que é o Homem não for detido... chegará o dia em que não haverá moradas para ninguém.
É preciso, é urgente, fazer-lhe frente!
E agora peço que me desculpes mas vou aproveitar para deixar aqui esta mensagem:
Gostaria de partilhar contigo a postagem que publiquei ontem, dia 09/11/16, no meu blog A CASA DA MARIQUINHAS/
Desde já o meu “Bem hajas!”
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS
PS – Desculpa o “copy & paste”
Uma responsável chamada de atenção!
ResponderEliminarBem haja!
Tanto pássaro no desespero de não ter árvore
ResponderEliminarMultiplicam-se aqueles que não têm chão nem grão
Como se o desespero da morte fosse a melhor sorte
fechamo-nos no egoísmo alucinado de punhos fechados
Já nem um sobressalto agita a árvore das intenções
Um belo texto, Odete Ferreira, a burilar a essência da razão das coisas.
O ser humano é um devastador, irresponsável, pensa em lucro. Mas a natureza, um dia, vinga-se. É o que temos visto!
ResponderEliminarBeijo, amiga! Belo seu texto.
Um texto que com palavras bem simples, nos retrata bem, o problema da reflorestação no país... Como sempre a Odete sabe-o fazer e bem!Apesar de retratar um problema bem presente é um texto muito bonito, e com sentimento! Parabéns mais uma vez... Beijinho
ResponderEliminarBoa tarde, as fotos já nos mostram a tristeza, quanta devastação em todos os lugares, quantos ninhos destruídos literalmente, quantas vidas de insetos foram destruídas pelo simples ato da destruição. Muito triste! Abraço!
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