sábado, 29 de outubro de 2016

Sangramento(s)

A morada

Ainda com a indolência própria dos gestos preguiçosos de noites repousantes, abri as janelas que dão para a parte do jardim mais arborizada. Um pouco antes, no escasso tempo que os passos percorreram entre a copa e a cozinha, chegara-me, nítido, o chilreio da passarada. Estava habituada a ouvi-lo, mas não desta forma. Entre a curiosidade, a surpresa e a inquietude, saindo para o exterior, desafiando a frescura da manhã enevoada, quedei-me, atónita, confesso, na contemplação daquele quadro inusitado e inquietante. Os pássaros voavam de um lado para o outro num alvoroço confrangedor. Compreendi os sinais como se fora um deles.
Sem aviso prévio, haviam sido despejados da sua morada. E exprimiam a sua dor. Numa revolta que não poderia reverter, nem tampouco amaciar. Eu tivera tempo para me preparar para a mudança. A razão tivera tempo de preparar a emoção da perda. Irreversível. Imperativa há muito, mas que fora adiando. Afinal não havia sido responsável pela plantação de árvores de grande porte no jardim. Confiei no saber fazer de jardineiros. Agora, avisada pelos tempos de constantes enganos, já me precavo e negoceio as regras para o meu território.


Passou-se no meu quintal, hoje. Quantos quintais do meu país a sofrerem a desfaçatez da incompetência e da negligência! Quantos quintais a precisarem de um planeamento holístico! Urgente evitar dores. Todos somos Terra! Felizmente, há outras moradas por ali. E este pensamento aliviou-me, tal como a notícia que ouvi, quase em simultâneo ao narrado, de medidas que vão ser adotadas, preventivas da calamidade dos fogos. Coincidência? Não. Apenas necessidades e urgências. Apenas os gritos da Terra a imporem-se, antes que, como escrevi no poema Ardem-me os olhos :
Será a mãe nossa que pedirá algozes,
antes que todos os filhos nasçam estropiados. 

Odete Ferreira - 27-10-16

Adenda em 28-10:
Hoje, apressei-me a abrir as janelas. O chilreio da passarada havia retomado a sua cadência normal e o voo era apenas voo. Como bons vizinhos, as moradas desocupadas acolheram novos inquilinos. Senti-me mais leve. 

Fotos: Odete Ferreira

18 comentários:

  1. Um texto poeticamente emoldurando a natureza!
    Belo de se ler e de se transportar à mesma!
    Abraço.

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  2. Belo texto, Odete.
    O homem dá cabo da natureza, sem se lembrar que ela é a sua casa e que precisa viver nela.
    Um abraço e bom Domingo

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  3. Belo texto
    Que não se vandalizem as memórias vivas

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  4. Portas abertas janelas escancaradas
    bj

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  5. Não nos damos conta que fazemos parte da natureza, sem ela pereceremos. Ou mais, dependemos dela. O homem depreda tudo, até sua própria imagem - pra não deixar rastros bandidos?

    Bj - ótima semana!

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  6. "Todos somos Terra". Perfeito.

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  7. O impacto foi minimizado porque, segundo creio, não existem crias
    nesta altura do ano, e os pássaros refazem rapidamente os seus ninhos.
    Também ficaria preocupada com esse chilreio aflito...
    Um texto muito interessante, revelando grande sensibilidade ecológica.
    Um abraço do tamanho da Terra, querida amiga.
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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  8. Um respirar mais leve temperado na harmonia das coisas...

    Um beijinho, Odete :)

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  9. Belíssima narrativa, como eu comungo deste teu sentir e
    olhar, minha amiga.

    Um encanto este teu texto com uma intervenção sobre este
    mundo cada vez mais desmantelado e desprovido de consciência
    e prática diante de que somos um só com a natureza e ela sendo
    sempre generosa com esta humanidade feroz na ganância de tudo...
    Bjos.

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  10. Um belo texto minha amiga e eu como amante de árvores fico sempre incomodado quando têm que abater alguma ou então quando fazem cortes nos ramos que são autênticos actos de barbaridade.
    Saiu à pouco tempo um livro muito interessante de um Senhor austríaco Peter Wohlleben que é guarda florestal e que nos presenteia com uma verdadeira pérola literária "A Vida Secreta das Árvores".
    Um abraço e bom fim-de-semana.

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  11. Cara Odete

    Fala aqui de um assunto que me afligiu e que me aflige sempre quando a Câmara aqui do burgo resolve podar as árvores. É um autêntico despejo da passarada que ali passa a noite e tive a desdita de um dia, à boca da noite, presenciar e ouvir os seus gritos desesperados, desorientados, como que chamando uns pelos outros, dizendo "vamos procurar outro sítio", como que famílias a juntarem-se, pais à procura dos filhos, enfim, de cortar o coração. A Terra com lugar para todos...seria o ideal e também de pura justiça.

    Bom domingo.

    Beijinhos

    Olinda

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  12. Uma Natureza mais harmoniosa depende sempre de nós.
    Pensei que já te tinha comentado.
    Uma boa semana.
    Beijos.

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  13. "Felizmente, há outras moradas por ali." - dizes tu.
    E eu pergunto: Até quando?
    Confrange-me a alma ver derrubar uma árvore.
    Se o grande predador que é o Homem não for detido... chegará o dia em que não haverá moradas para ninguém.
    É preciso, é urgente, fazer-lhe frente!

    E agora peço que me desculpes mas vou aproveitar para deixar aqui esta mensagem:
    Gostaria de partilhar contigo a postagem que publiquei ontem, dia 09/11/16, no meu blog A CASA DA MARIQUINHAS/
    Desde já o meu “Bem hajas!”
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

    PS – Desculpa o “copy & paste”

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  14. Uma responsável chamada de atenção!
    Bem haja!

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  15. Tanto pássaro no desespero de não ter árvore
    Multiplicam-se aqueles que não têm chão nem grão
    Como se o desespero da morte fosse a melhor sorte
    fechamo-nos no egoísmo alucinado de punhos fechados
    Já nem um sobressalto agita a árvore das intenções

    Um belo texto, Odete Ferreira, a burilar a essência da razão das coisas.

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  16. O ser humano é um devastador, irresponsável, pensa em lucro. Mas a natureza, um dia, vinga-se. É o que temos visto!
    Beijo, amiga! Belo seu texto.

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  17. Um texto que com palavras bem simples, nos retrata bem, o problema da reflorestação no país... Como sempre a Odete sabe-o fazer e bem!Apesar de retratar um problema bem presente é um texto muito bonito, e com sentimento! Parabéns mais uma vez... Beijinho

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  18. Boa tarde, as fotos já nos mostram a tristeza, quanta devastação em todos os lugares, quantos ninhos destruídos literalmente, quantas vidas de insetos foram destruídas pelo simples ato da destruição. Muito triste! Abraço!

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