Foto retirada do google. Mirandela (muito) antiga
Um dia banal. Como quase todos os que decorrem na placidez de uma vila amorfa visível nos raros transeuntes que caminham no vagar do piso esperando a reparação de buracos onde, à falta de espelhos, miramos com pudor a imagem refletida. Era um exercício quase automático; a cabeça pendia tendencialmente para o chão, como se uma burka invisível nos fosse vestida pelos olhares atrevidotes do sexo oposto. Ou talvez, sem o saber, esse abaixamento fosse a postura normal nas gentes anónimas, subservientes pelo espaço onde apenas alguns teriam direito a caminhar na sua altivez endinheirada.
Confesso que não sei. Deduzo à luz do
conhecimento adquirido, na análise de um caminho que fui palmilhando e na
reflexão atitudinal do meu ser atual.
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Prontidão de gestos no levantar da cama,
pressa no esvaziamento da caneca de café – já detestava leite – e no fugaz
sabor do pão barrado a margarina ou compota feita pelas habilidosas mãos da
mãe. Na altura dos meus dezassete anos, a mãe já lograra arranjar um emprego.
Mas, há muito, que era totalmente autónoma, extremamente zelosa dos meus
deveres e, na mesma medida, cuidadosa, poupando-lhe horas de trabalho nas
tarefas caseiras. Fui menina; contudo, aos dez anos, lembro-me muito bem de
conseguir arrumar a casa sozinha e de cozinhar, ainda que, neste caso, sob
orientações da mãe. A par, quase em segredo, devorava livros da Biblioteca
Calouste Gulbenkian que escondia por debaixo dos livros de estudo. Esgotadas as
peripécias do género aventura dos sete, a curiosidade detinha-se nas
prateleiras dos livros interditos à minha idade. O Sr. Lemos sorria e
deixava-mos requisitar. Deste modo, apesar do desterro geográfico mas, creio,
que também político, em que o corpo cresceu, a ânsia de viajar por novos mundos
era já tão natural que me aventurava em questionamentos, sempre que algum
forasteiro se inseria no grupo de amigos.
Andava no 6.º ano, atual 10.º ano. Esplanada do café
mais emblemático de então – soube, mais tarde, já depois do 25 de abril, palco
de discussões e reuniões anti-regime. Falávamos do país, eu e o recém chegado, de
regimes, embora fosse uma simples curiosa na matéria. Confidenciava-me que
vivíamos num país capitalista. De imediato exclamei “Como, se somos tão
pobres!”. “Fala baixo, fala baixo”, disse apressadamente o Sílvio (penso que
era esse o seu nome). “Porquê?”, ripostei quase de imediato. Penso que devo ter
ficado automaticamente vacinada para qualquer regime totalitário, após a
explanação do Sílvio. Andara pela Europa. Sabia do que falava…Após algum tempo
deixei de o ver. Deve ter continuado o seu périplo, numa espécie de
evangelização sobre a ignorância em que se vivia.
Odete Ferreira
Em 2014, a Pastelaria Studios Editora lançou o desafio "Onde estavas no 25 de Abril?". Participei nele, escrevendo este singelo testemunho que vou divulgar no blogue, diariamente, dividindo em 4 ou 5 partes. Está publicado na Coletânea 25-04-1974, da mesma editora.
Gostei de ler.
ResponderEliminarUm abraço
A curiosidade nasce e se desenvolve até ser infinitamente sanada! abraços
ResponderEliminarGostei da participação e é interessante eu também estava no meu 5º ano da Escola Comercial e Industrial de Setúbal.
ResponderEliminarUm abraço e boa semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Uma leitura que se vislumbra agradabilíssima...
ResponderEliminarBjnho
~~
Querida Odete
ResponderEliminarGostei imenso de ler esta primeira parte. Vou continuar com todo o prazer.
Muito obrigada.
Beijinhos.
Olinda
Um relato da vera realidade da época nas Terras menos bafejadas de política e mais genuínas e puras nas atitudes e procedimentos. (1)
ResponderEliminarBeijo
SOL
Que texto interessante !
ResponderEliminarGostei muito de entrar desta forma na história.