domingo, 23 de abril de 2017

Onde estavas no 25 de abril? (1)




Foto retirada do google. Mirandela (muito) antiga

Um dia banal. Como quase todos os que decorrem na placidez de uma vila amorfa visível nos raros transeuntes que caminham no vagar do piso esperando a reparação de buracos onde, à falta de espelhos, miramos com pudor a imagem refletida. Era um exercício quase automático; a cabeça pendia tendencialmente para o chão, como se uma burka invisível nos fosse vestida pelos olhares atrevidotes do sexo oposto. Ou talvez, sem o saber, esse abaixamento fosse a postura normal nas gentes anónimas, subservientes pelo espaço onde apenas alguns teriam direito a caminhar na sua altivez endinheirada.
Confesso que não sei. Deduzo à luz do conhecimento adquirido, na análise de um caminho que fui palmilhando e na reflexão atitudinal do meu ser atual.
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Prontidão de gestos no levantar da cama, pressa no esvaziamento da caneca de café – já detestava leite – e no fugaz sabor do pão barrado a margarina ou compota feita pelas habilidosas mãos da mãe. Na altura dos meus dezassete anos, a mãe já lograra arranjar um emprego. Mas, há muito, que era totalmente autónoma, extremamente zelosa dos meus deveres e, na mesma medida, cuidadosa, poupando-lhe horas de trabalho nas tarefas caseiras. Fui menina; contudo, aos dez anos, lembro-me muito bem de conseguir arrumar a casa sozinha e de cozinhar, ainda que, neste caso, sob orientações da mãe. A par, quase em segredo, devorava livros da Biblioteca Calouste Gulbenkian que escondia por debaixo dos livros de estudo. Esgotadas as peripécias do género aventura dos sete, a curiosidade detinha-se nas prateleiras dos livros interditos à minha idade. O Sr. Lemos sorria e deixava-mos requisitar. Deste modo, apesar do desterro geográfico mas, creio, que também político, em que o corpo cresceu, a ânsia de viajar por novos mundos era já tão natural que me aventurava em questionamentos, sempre que algum forasteiro se inseria no grupo de amigos.
Andava no 6.º ano, atual 10.º ano. Esplanada do café mais emblemático de então – soube, mais tarde, já depois do 25 de abril, palco de discussões e reuniões anti-regime. Falávamos do país, eu e o recém chegado, de regimes, embora fosse uma simples curiosa na matéria. Confidenciava-me que vivíamos num país capitalista. De imediato exclamei “Como, se somos tão pobres!”. “Fala baixo, fala baixo”, disse apressadamente o Sílvio (penso que era esse o seu nome). “Porquê?”, ripostei quase de imediato. Penso que devo ter ficado automaticamente vacinada para qualquer regime totalitário, após a explanação do Sílvio. Andara pela Europa. Sabia do que falava…Após algum tempo deixei de o ver. Deve ter continuado o seu périplo, numa espécie de evangelização sobre a ignorância em que se vivia. 

Odete Ferreira

Em 2014, a Pastelaria Studios Editora lançou o desafio "Onde estavas no 25 de Abril?". Participei nele, escrevendo este singelo testemunho que vou divulgar no blogue, diariamente, dividindo em 4 ou 5 partes. Está publicado na Coletânea 25-04-1974, da mesma editora.

7 comentários:

  1. A curiosidade nasce e se desenvolve até ser infinitamente sanada! abraços

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  2. Gostei da participação e é interessante eu também estava no meu 5º ano da Escola Comercial e Industrial de Setúbal.
    Um abraço e boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    Livros-Autografados

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  3. Uma leitura que se vislumbra agradabilíssima...
    Bjnho
    ~~

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  4. Querida Odete

    Gostei imenso de ler esta primeira parte. Vou continuar com todo o prazer.

    Muito obrigada.

    Beijinhos.

    Olinda

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  5. Um relato da vera realidade da época nas Terras menos bafejadas de política e mais genuínas e puras nas atitudes e procedimentos. (1)


    Beijo
    SOL

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  6. Que texto interessante !
    Gostei muito de entrar desta forma na história.

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