segunda-feira, 24 de abril de 2017

Onde estavas no 25 de abril? (2)

E nesse estado, misto de puerilidade, ingenuidade e curiosidade pelo que me era interdito saber, assim me encontrava na época do golpe de estado. Por vezes uma colega minha – penso que um pouco mais velha e filha do gerente de um banco, pessoa naturalmente mais conhecedora da situação política portuguesa – atrevia-se a tentar uma conversa com o padre de Religião e Moral. Ainda hoje penso por que razão seria nestas aulas. Mas tinha a ver com o que, certamente, em sua casa se conversava, trazendo já, coladas na sua maturidade, algumas pedras no sapato anti-clericais.

A verdade é que as minhas orelhas se arrebitavam percebendo, nas entrelinhas, que ela queria saber até que ponto o padre de então seria detentor de ações ou movimentos que começavam a ser sibilados. Bastava-me ouvir segmentos lexicais como “movimento estudantil” ou a alusão a Coimbra para perceber que havia algo que mexia. Tudo parecia tão longínquo! A geografia e os lugares do conhecimento! Coimbra que conhecia pelo fado. O meu fado e o de tanta gente era claramente o da amputação mental: ignorância, desterro, escravidão na mera passagem de dias dedicados a  tarefas prosaicas. O sonho, a fantasia não passava por este país; assim só tinha como referência os lugares que me visitavam nos livros que devorava. Contudo, nem o perspicaz Sr. Lemos me podia valer. Nunca encontrei nas prateleiras da Biblioteca Calouste Gulbenkian livros políticos (ou não soube procurar) . E eu que sempre tinha uma relação de atração fatal pelo desafio, não escolhera ter aquela disciplina de Organização Política, trocara-a por outra língua estrangeira (apanhara uma reforma que permitia escolher disciplinas, havendo apenas duas ou três obrigatórias, conforme a área escolhida); razão: havia sempre boas notas, logo não valia a pena ter uma disciplina tão fácil – deduzia eu. Estudar alemão, isso sim, é que era um desafio (além de latim e inglês).
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Regresso ao tal dia banal… Cheguei ao então liceu nacional num dia insuspeito. Parece que ainda não havia tocado para a entrada ou então já teria tocado mas ninguém se dirigia para o edifício principal ou para os pavilhões pré-fabricados. “Hoje não há aulas”, alguém anunciou, talvez o diretor do liceu da altura. A surpresa foi dando lugar a alguma apreensão. Era inédito! Contudo, quase de imediato, fomos sabendo a razão: tinha havido uma revolução em Lisboa mas os contornos da dita permaneciam desconhecidos. A “revolução” não era uma varinha de condão para repor a falta de instrumentos básicos de que o sistema nos amputara. Assim, entre a já referida apreensão e o contentamento por termos um dia inteiro de “feriados”, o nosso grupinho desceu vagarosamente a ladeira de acesso ao liceu, vindo passear-se pelo único espaço que percorríamos para cá e para lá, inúmeras vezes, na estreiteza da distância – a rua principal – tal como o eram as nossas mentes em relação à política. 

Odete Ferreira (testemunho iniciado no dia 23)

9 comentários:

  1. Continuo a gostar de ler.
    Um abraço

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  2. Pois é no dia 25 de Abril de 1974 estava eu pelas 07.00 horas da manhã à porta da Escola Comercial e Industrial de Setúbal para uma visita de estudo a Coimbra. Lá elas 08.00 horas soubemos que não havia visita e que estava em curso uma revolução e foi um dia inesquecível.
    Um abraço e boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    Livros-Autografados

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  3. Tinhá eu 17 anos e nem sabia o que acontecera. Estava na escola industrial...
    Tinhá a aula de história e perguntei a prof o que era fascismo
    Kis :=}

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  4. Gostei desta narrativa e da anterior que fui ler...
    Fantástico como tudo aconteceu! Eu era uma impreparada politicamente, confesso. Como quase toda a gente. Mas aquele dia mexeu comigo e nunca mais fui a mesma... Entendes, não é assim?
    Uma boa semana.
    Um beijo, Odete.

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  5. Subscrevo as palavras da Graça.
    Eu soube do que acontecera pela rádio do autocarro em que dirigia ao Liceu...
    Gostei de te ler.
    Beijinho

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  6. Eu compreendi imediatamente, logo na primeira notícia
    e foi uma emoção tão intensa e especial, que nunca
    experimentei outra semelhante...
    Bjnho
    ~~~

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  7. Minha querida

    Identifico-me com a tua história, que é a de todos nós. Vivia-se em espaços mentais sem horizontes. A notícia de uma revolução ou golpe de Estado era algo um tanto incompreensível, talvez na altura não adivinhássemos a sua magnitude. Era preciso tempo para assimilarmos tudo...

    Beijinhos.

    Olinda

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  8. Cancelaram-se aulas, trabalhos, viagens...
    Sinais do tempo. Hoje, sem golpes de Estado, continuam-se a suspender ensinamentos que tanta falta fazem aos jovens de agora.Aos Professores é "vedada" a imposição de sabedoria. Não podemos comparar as "responsabilidades" que pesavam sobre cada jovem. Os de hoje carecem desse "peso" e têm o apoio dos parentes
    (Mas há quem não concorde!).
    Talvez seja (eu) pessimista!
    Estou a gostar do teu Relato, Odete. (2)

    Beijo
    SOL


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  9. Olá Odete! Estou seguindo seu espaço com meus dois perfis porque gostei muito das suas postagens. Sucesso, um grande abraço. quando for possível veja minhas postagens. Abraçoss

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