E nesse estado, misto de puerilidade,
ingenuidade e curiosidade pelo que me era interdito saber, assim me encontrava
na época do golpe de estado. Por vezes uma colega minha – penso que um pouco
mais velha e filha do gerente de um banco, pessoa naturalmente mais conhecedora
da situação política portuguesa – atrevia-se a tentar uma conversa com o padre
de Religião e Moral. Ainda hoje penso por que razão seria nestas aulas. Mas
tinha a ver com o que, certamente, em sua casa se conversava, trazendo já, coladas
na sua maturidade, algumas pedras no sapato anti-clericais.
A verdade é que as minhas orelhas se
arrebitavam percebendo, nas entrelinhas, que ela queria saber até que ponto o
padre de então seria detentor de ações ou movimentos que começavam a ser
sibilados. Bastava-me ouvir segmentos lexicais como “movimento estudantil” ou a
alusão a Coimbra para perceber que havia algo que mexia. Tudo parecia tão
longínquo! A geografia e os lugares do conhecimento! Coimbra que conhecia pelo
fado. O meu fado e o de tanta gente era claramente o da amputação mental:
ignorância, desterro, escravidão na mera passagem de dias dedicados a tarefas prosaicas. O sonho, a fantasia não
passava por este país; assim só tinha como referência os lugares que me
visitavam nos livros que devorava. Contudo, nem o perspicaz Sr. Lemos me podia
valer. Nunca encontrei nas prateleiras da Biblioteca Calouste Gulbenkian livros políticos (ou não soube procurar) . E eu que sempre
tinha uma relação de atração fatal pelo desafio, não escolhera ter aquela
disciplina de Organização Política, trocara-a por outra língua estrangeira
(apanhara uma reforma que permitia escolher disciplinas, havendo apenas duas ou
três obrigatórias, conforme a área escolhida); razão: havia sempre boas notas,
logo não valia a pena ter uma disciplina tão fácil – deduzia eu. Estudar
alemão, isso sim, é que era um desafio (além de latim e inglês).
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Regresso ao tal dia banal… Cheguei ao então
liceu nacional num dia insuspeito. Parece que ainda não havia tocado para a
entrada ou então já teria tocado mas ninguém se dirigia para o edifício
principal ou para os pavilhões pré-fabricados. “Hoje não há aulas”, alguém
anunciou, talvez o diretor do liceu da altura. A surpresa foi dando lugar a
alguma apreensão. Era inédito! Contudo, quase de imediato, fomos sabendo a
razão: tinha havido uma revolução em Lisboa mas os contornos da dita
permaneciam desconhecidos. A “revolução” não era uma varinha de condão para repor
a falta de instrumentos básicos de que o sistema nos amputara. Assim, entre a já referida apreensão e o contentamento por termos um dia
inteiro de “feriados”, o nosso grupinho desceu vagarosamente a ladeira de
acesso ao liceu, vindo passear-se pelo único espaço que percorríamos para cá e
para lá, inúmeras vezes, na estreiteza da distância – a rua principal – tal
como o eram as nossas mentes em relação à política.
Odete Ferreira (testemunho iniciado no dia 23)
Continuo a gostar de ler.
ResponderEliminarUm abraço
Pois é no dia 25 de Abril de 1974 estava eu pelas 07.00 horas da manhã à porta da Escola Comercial e Industrial de Setúbal para uma visita de estudo a Coimbra. Lá elas 08.00 horas soubemos que não havia visita e que estava em curso uma revolução e foi um dia inesquecível.
ResponderEliminarUm abraço e boa semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Tinhá eu 17 anos e nem sabia o que acontecera. Estava na escola industrial...
ResponderEliminarTinhá a aula de história e perguntei a prof o que era fascismo
Kis :=}
Gostei desta narrativa e da anterior que fui ler...
ResponderEliminarFantástico como tudo aconteceu! Eu era uma impreparada politicamente, confesso. Como quase toda a gente. Mas aquele dia mexeu comigo e nunca mais fui a mesma... Entendes, não é assim?
Uma boa semana.
Um beijo, Odete.
Subscrevo as palavras da Graça.
ResponderEliminarEu soube do que acontecera pela rádio do autocarro em que dirigia ao Liceu...
Gostei de te ler.
Beijinho
Eu compreendi imediatamente, logo na primeira notícia
ResponderEliminare foi uma emoção tão intensa e especial, que nunca
experimentei outra semelhante...
Bjnho
~~~
Minha querida
ResponderEliminarIdentifico-me com a tua história, que é a de todos nós. Vivia-se em espaços mentais sem horizontes. A notícia de uma revolução ou golpe de Estado era algo um tanto incompreensível, talvez na altura não adivinhássemos a sua magnitude. Era preciso tempo para assimilarmos tudo...
Beijinhos.
Olinda
Cancelaram-se aulas, trabalhos, viagens...
ResponderEliminarSinais do tempo. Hoje, sem golpes de Estado, continuam-se a suspender ensinamentos que tanta falta fazem aos jovens de agora.Aos Professores é "vedada" a imposição de sabedoria. Não podemos comparar as "responsabilidades" que pesavam sobre cada jovem. Os de hoje carecem desse "peso" e têm o apoio dos parentes
(Mas há quem não concorde!).
Talvez seja (eu) pessimista!
Estou a gostar do teu Relato, Odete. (2)
Beijo
SOL
Olá Odete! Estou seguindo seu espaço com meus dois perfis porque gostei muito das suas postagens. Sucesso, um grande abraço. quando for possível veja minhas postagens. Abraçoss
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