segunda-feira, 24 de abril de 2017

Onde estavas no 25 de abril? (3)

Na disciplina de história (uma das minhas preferidas) a quantas revoluções assisti pelas vozes de contadores de histórias, as minhas encantadoras professoras da disciplina! Ainda hoje me lembro da professora Cândida dizendo “Então o fulaninho…”. Eram histórias dentro da história. Uma delícia, esses relatos! Às batalhas, às guerras, às revoluções dava-lhes um condimento mágico, apesar da moldura de horrores que as precedia e se lhes seguia. Era passado, agora era presente. E havia uma revolução, caramba e eu iria assistir! No fundo, sentia um formigueiro de emoções…
Cada uma de nós lá ia conjecturando umas coisas mas nada de substancial que me marcasse a memória. Lembro-me de proferir um desabafo “Só não quero que haja fome”. Percebo bem esta verbalização. À época  a toda a conturbação social de que tivera conhecimento em contexto educativo, estava associada a fome (então a célebre frase de Maria Antonieta sobre a fome do povo “Qu´ils mangent de la brioche” era bem a súmula da repulsa que agitava já o meu ainda imberbe sentido de preocupação pelo outro, pelos sem voz, pelo desfavorecido da sorte..). Era também o que mais me marcava nos relatos dos avós: a racionalização, as senhas, as filas. E a literatura  do período realista estava bem presente. Consequentemente, todo este imaginário me levava a recear tal efeito.
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Preenchida a manhã nesta deambulação pela rua principal, o resto do dia passei-o por casa, seguindo avidamente as notícias que iam passando na rádio e acompanhando as imagens numa TV ainda a preto e branco. Fui montando o puzzle e, à medida que as peças se encaixavam, dava-me conta do enorme feito do momento verdadeiramente histórico que estava a viver. E, cá dentro, sentia um enamoramento irracional, uma paixão avassaladora por aquelas pessoas, aqueles lugares, aquela gente anónima que sorria ao mundo com pueril inocência. Tento que a minha memória de então não se deixe invadir pelo conhecimento atualizado dos documentários, relatos e séries a que assistimos de vez em quando, sobretudo sempre que se aproxima mais um aniversário da revolução. E ainda bem. Quem não viveu os acontecimentos, tem de perceber a grandeza levada a cabo por um punhado de gente que nos devolveu o principal legado incontornável: a liberdade! Para mim, o direito primordial da condição humana. Assim, foco-me na magia das imagens: um mar de gente anónima, o dito povo, nas ruas, audaciosamente proferindo a plenos pulmões as palavras “de ordem”, como passaram a ser designadas, como que libertando todos os gritos silenciados por anos de obscurantismo; os jovens empoleirados nas árvores, assistindo de camarote aos acontecimentos da rua do Carmo. Os cravos que adquiriram um estatuto maior ao serem símbolo de uma revolução sem armas. E era no meu Portugal, de uma pequenez geográfica, que se projetava ao mundo como referência… Percorre-me um arrepio emotivo, evocando estes momentos. Afinal havia heróis de carne e osso. Não os podia tocar, mas via-os e ouvia-os. Fazia parte do filme, não era apenas um elemento decorativo num cenário imaginário. Este era um cenário real, onde todos se sentiam atores principais. Com uma velocidade estonteante e uma avidez contagiante, também na minha cidade (então vila) se viveu intensamente o 25 de abril. Fui sabendo que, afinal, havia muita gente contra o regime; fui sabendo quem tinha sido molestado pela PIDE; fui sabendo de reuniões secretas; fui sabendo de tanta coisa. E aí, sim, o orgulho personificou-se. A minha terra, situada num Trás-os Montes, esquecido, tinha homens e mulheres pensantes. O avô Mário ainda chegou a ser interpelado pela polícia. Falava alto e de boca cheia. Estava catalogado, assim como tantos outros que sofriam na pele a dureza da terra e o silêncio dos inocentes.

Odete Ferreira (testemunho iniciado no dia 23)

8 comentários:

  1. Está ótima a descrição das horas que vivenciaste
    no teu lindo torrão natal...
    Uma alegria indescritível!
    Excelente homenagem.
    Bjnho

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  2. Tb falo de mim no 25 de abril e tudo tem a ver com história.
    Kis :=}

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  3. Muito interessante. Gosto de saber de quem cá estava, já que não me foi dado ver o que por cá se passou.
    Um abraço e viva a Liberdade

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  4. Um texto narrativo de excelente sensibilidade contando o que se passou contigo, Odete. "Percorre-me um arrepio emotivo, evocando estes momentos." Foi o que me aconteceu ao ler-te.
    Um bom dia.
    Um beijo, minha Amiga.

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  5. Há uma luz que refulge, sulcando as trevas
    Há um gesto que renasce, fazendo o dia
    Há um canto que se ouve, quase em murmúrio
    Há um despontar de vozes, quase melodia.

    Um beijinho, Odete :)

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  6. Sim, minha querida, foi uma catadupa de informações, coisas novas, situações sobre as quais nem sonhávamos. Um mundo novo, prenhe de sensações,abria-se ao nosso olhar ávido e atingia o nosso entendimento.

    Beijinhos.

    Olinda

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  7. Relatas muito bem o que ia sucedendo. As notícias são fundamentais para manter união (ou a falta dela). Na hora, acho que até o mais amedrontado Ser, no meio do Povo, se "acreditava" alegre e feliz.
    Depois de cada Guerra ou Golpe de Estado, o sofrimento a fome se vão diluindo no "condimento mágico" da História contada.
    Relato, na primeira pessoa, vivido no tempo.


    Beijo
    SOL

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  8. descreves muito bem a "paisagem" político-social de uma época, com a autenticidade de quem se expõe com elegância e pudor na narrativa.

    gostei muito de ler, Odete

    beijo

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